Em Novembro de 1947, fez agora 76 anos, umas jovens Nações Unidas votaram favoravelmente um plano para o Mandato Britânico sobre a Palestina que previa a divisão da região em dois países. Um governado pelos judeus chamado Israel e outro governado pelos Árabes chamado Palestina. Dos 56 estados membros presentes 33 votaram a favor e apenas 13 votaram contra, ultrapassando assim os dois terços necessários para aprovar o plano (excluindo as abstenções). Os judeus obviamente aceitaram a votação e criaram o Estado de Israel. Os árabes não reconheceram essa legitimidade e não criaram o Estado da Palestina.

A questão da legitimidade de um Estado é antiga. Nunca foi satisfatoriamente resolvida e, provavelmente, nunca será. Afinal de contas o que é um Estado? Na ordem mundial que se desenhou após a Segunda Guerra Mundial, esperava-se que as Nações Unidas fossem um fórum para resolver pacificamente os diferendos internacionais e dar uma resposta a esta questão. Um estado seria todo aquele governo sobre um território que o consenso internacional das nações reconhecesse como tal.

Mas esta forma de dar legitimidade à criação de dois estados na região do Mandato tinha uma vantagem óbvia e um problema sério. A vantagem óbvia era dar à resolução, caso fosse aprovada e como depois foi, o apoio de pelo menos dois terços das chancelarias diplomáticas do planeta naquele momento. O problema sério foi dar a todos os interesses diplomáticos a mesma importância (1 voto) quando a questão era muito mais relevante para uns que para outros, nomeadamente, para os países limítrofes. E não só os árabes (a Grécia e a Turquia também votaram contra). E assim sucedeu que, apesar da aprovação do plano pelas Nações Unidas, os países muçulmanos, a Índia (com uma minoria muçulmana importante), a Grécia e mais surpreendentemente Cuba (13 anos antes de Fidel Castro tomar o poder) votaram contra. Menos surpreendente foi o início de uma guerra civil na região que culminou com a invasão pela Liga Árabe (Egipto, Transjordânia, Iraque, Síria, Líbano, Arábia Saudita e Iémen) do novo Estado de Israel na véspera de este ser oficialmente proclamado.

Só que, para surpresa de muita gente, a começar talvez pelos próprios beligerantes, no final do conflito não só Israel tinha sobrevivido como aumentou os territórios sobre os quais exercia poder militar e, consequentemente, político. E a coisa deveria ter acabado aqui. Ou, mesmo senão, depois desta houve mais três guerras – Crise do Suez em 1956, Seis Dias em 1967 e Yom Kippur em 1973 – sempre com vitória de Israel, duas delas de novo com tentativas de invasão de países vizinhos, e que tiveram como consequência novos ganhos territoriais. Senão em 1948, pelo menos em 1973 a lição já deveria ter sido aprendida. E de certa forma foi, porque desde então nenhum país da região arriscou um novo confronto directo. Quem manda no território de Israel, tanto o atribuído pelas Nações Unidas, como o conquistado depois, é o Estado de Israel.

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Desde o ponto de vista militar a questão da Palestina está resolvida desde pelo menos 1973. O principal motivo, para não dizer o único, pelo qual o problema não acabou em 1973 é porque em 1949, finda a primeira guerra, existiam cerca de 750,000 árabes refugiados nas zonas limítrofes a Israel sem ter para onde ir que mais tarde, com a expansão territorial que resultou das guerras subsequentes, passaram a viver em zonas ocupadas por Israel. O “sem ter para onde ir” talvez não seja a forma mais correcta de descrever a situação. Porque sendo certo que não lhes foi proposto um destino alternativo, foram-lhes dadas as condições mínimas para poder continuar indefinidamente a assumir o papel de refugiados. Uma situação caricata, provavelmente única na História Universal. Diz-se que Moisés vagueou com os judeus durante 40 anos no deserto sem poder entrar na Terra Prometida. A ser verdade, o êxodo dos palestinianos já tem quase o dobro do tempo.

A questão dos refugiados é tão mais caricata quanto, após o conflito de 1948-49 com a vitória de Israel, os judeus deixaram de ser pessoas bem-vindas nos países de ampla maioria muçulmana e um número muito provavelmente superior ao de árabes da Palestina, isto é, cerca de 1 milhão de pessoas, abandonou as suas casas ancestrais, as suas propriedades, as suas vidas nesses países e nunca mais olharam para trás. Grande parte dos quais estabeleceu-se em Israel, uns 600 mil, o único país que, por lei, era obrigado a aceitá-los.

E não foram só os judeus. Um pouco antes da Independência de Israel, 13 milhões de alemães começaram a voltar do Leste da Europa a uma Alemanha física e economicamente destruída. Voltar é uma forma de falar. Muitos eram filhos de várias gerações de alemães que jamais tinham vivido a oeste do Oder ou do Danúbio, espalhados pelos antigos territórios do Império Austríaco, da Prússia Oriental, e até mesmo das colónias alemãs nos confins da Geórgia. O mesmo sucedeu no resto da Europa. Em 1945 decidiu-se que, para além da Alemanha e de uma deslocação da Polónia para Ocidente, as fronteiras políticas ficariam practicamente iguais e foram as pessoas que foram deportadas. Só com essa decisão, dois milhões de polacos foram obrigados a abandonar as regiões entretanto ocupadas pela URSS (hoje em dia na Ucrânia e Bielorrússia). Mas houve mais: a Bulgária mandou 160 mil turcos para a Turquia; checoslovacos e húngaros acordaram trocar 120 mil pessoas entre si e também houve trocas entre romenos e húngaros, polacos e lituanos, checoslovacos e ucranianos. Cerca de dois milhões de cidadãos soviéticos voltaram à URSS. Também no Ocidente, dois milhões de franceses, 700 mil italianos, 350 mil checos, 300 mil holandeses e 300 mil belgas voltaram da Alemanha aos seus países. Isto para não falar dos quatro milhões de judeus que abandonaram a Europa.

O resultado de todas estas deportações e emigrações foi que a Alemanha passou a estar povoada por alemães. A Polónia, cuja população era 68% polaca em 1939, passou a ser essencialmente e apenas polaca. A Checoslováquia, que antes do Acordo de Munique tinha uma população com 22% de alemães, 5% húngaros, 3% de ucranianos e 1,5% judeus, era agora constituída exclusivamente por checos e eslovacos. O resultado foi uma Europa muito mais “arrumada” etnicamente. Quando se diz que a partir de 1945 a Europa conseguiu finalmente viver décadas de paz, ignora-se o pesadelo de milhões de pessoas em movimento num continente arrasado pela guerra que possibilitou esse sonho: uma Europa composta por estados-nação. As excepções eram a Jugoslávia, a URSS e a Espanha, esta última a única que ainda não sofreu uma guerra étnica desde então, mas que acabava de sair de uma em 1939 onde esse componente, não sendo determinante, também existiu.

Que os países árabes não tenham feito o mesmo pelos seus irmãos caídos em desgraça é, ou deveria ser, no mínimo surpreendente. Não que fosse fácil, como se viu na Jordânia em 1970 e no Líbano pouco depois, a partir de 1975. Ter uma grande concentração de árabes palestinianos foi um foco de instabilidade política, eufemisticamente falando, nos dois países. Mas uma grande diáspora, como sucedeu, para além de na Europa, com os judeus, arménios, hindus ou mesmo muçulmanos noutros locais, teria resolvido o problema. E não me parece que a especificidade religiosa seja um factor relevante. Por essa mesma altura, noutro caso que envolveu muçulmanos, milhões começaram a deslocar-se da Índia para o Paquistão após a partição do Raj Britânico em 1947 (melhor dito “os paquistães” porque eram dois – o Paquistão Ocidental e o Oriental, hoje em dia Bangladesh). Ninguém conhece o número certo mas, em 1951, o censo paquistanês contava 7,2 milhões de muçulmanos oriundos da Índia (e curiosamente os indianos contaram 7,3 milhões fazendo o caminho inverso).

Pelos vistos, no Subcontinente Indiano repartir um território de acordo com a maioria religiosa não era um problema no final da década de 40, só no Médio Oriente. É certo que, enquanto que nas regiões outorgadas à Palestina essa maioria religiosa era esmagadora (praticamente 100% da população) no lado judeu uma pequena maioria (55%) foi suficiente para reclamar o território. Mas o problema da tal pequena maioria até ficou logo resolvido logo em 1948, com a fuga ou expulsão massiva dos árabes dos territórios controlados pelos judeus e a chegada de judeus oriundos de países muçulmanos. De 45% da população no plano original, os árabes passaram a constituir cerca de 20% da população de Israel apesar da expansão territorial. Esses 20% de árabes e os seus descendentes são, desde então, cidadãos israelitas. Desde então, facto também ele normalmente esquecido, há árabes que nasceram, cresceram, viveram e morreram em Israel sem que de aí tenha surgido um genocídio, conflito étnico ou religioso. Algo extraordinário se atendermos ao ódio, que se supõe mortal, entre as duas etnias.

O problema, ao contrário do que nos querem fazer julgar, não é um ódio ancestral. O problema é um ódio actual, de três gerações que nasceram, cresceram e viveram nas fronteiras da terra dos seus antepassados, sem que ninguém os acolhesse e cuja utilidade é, essencialmente, a de carne para canhão das potências da região. É verdade que ainda existem tensões importantes entre a Índia e o Paquistão, onde a questão religiosa serve muitas vezes de recurso para o enfrentamento político e geostratégico entre os dois países, mas, regra geral, paquistaneses e indianos, não sendo amigos, estão obrigados a entender-se. Com a passagem do tempo, o ódio ou desaparece ou encontra um sítio no folclore, como no caso dos descendentes dos mouriscos expulsos da Península Ibérica há meio milénio. Em Marraquexe ou Istambul há famílias que ainda conservam as chaves das casas que se viram forçadas a abandonar em Granada. As casas, essas, já não existem, nem fazem falta, nem ninguém vai morrer por elas.

A braços com uma Intifada no início da década de 90, os israelitas perceberam que o problema dos refugiados não ia desaparecer e entregaram à OLP parte dos territórios ocupados para fazerem o seu próprio estado, já que nenhum país muçulmano estava disposto a fazer o mesmo. Em teoria esta era uma solução muito boa. Arafat tinha sido desterrado em Tunes e a OLP era vista com um misto de desconfiança e temor pelos vizinhos árabes de Israel desde que tentaram conquistar o poder na Jordânia e ajudaram a destruir o Líbano. E a OLP até tentou cumprir com o estabelecido, percebendo que Israel era o único estado que tinha alguma coisa a ganhar com o seu retorno à região. No ano 2000, quando finalmente se ia assinar o acordo em Camp David, que talvez tivesse resolvido o conflito para sempre, a população palestina sublevou-se e Arafat, tendo que escolher entre assegurar o poder liderando a revolta ou arriscar-se a perdê-lo para conseguir uma paz que muitos palestinianos afinal não queriam, escolheu compreensivelmente a primeira opção. Se em teoria a criação da Palestina por Israel era uma boa solução, na prática tem-se verificado desastrosa.

Apesar de as opiniões se dividirem, é unânime a caracterização do conflito como um problema complexo e de difícil resolução. Pode ser. Mas também é certo que nenhuma simplificação resume o problema à existência de 5.6 milhões de pessoas, descendentes dos 750,000 originais, numa terra virtualmente de ninguém, resignados à miséria e sempre disponíveis, uns voluntariamente outros à força, para servir de escudo humano no conflito. Resolver este problema é mais de meio caminho para resolver todo o problema. E muita gente não quer reconhecê-lo porque a solução passará, de uma forma mais ou menos ignominiosa, pelo desaparecimento desta gente. Gente que, em grande parte, foi mantida nestas condições pelo apelo à humanidade e à consciência da população do Ocidente. Primeiro, através das Nações Unidas que, por um lado, têm uma agência de refugiados, a ACNUR, que se dedica à recolocação de milhões de refugiados no mundo inteiro e, por outro, a UNRWA, que dedica 1.000 milhões de euros anualmente (e emprega 30,000 pessoas) essencialmente a manter os palestinianos onde estão. A estes juntou-se a União Europeia que, para além de financiar 60% do orçamento da UNRWA, é o maior doador directo à Palestina, com uma ajuda que se estima de cerca de 10.000 milhões de euros desde a assinatura dos acordos de Oslo em 1993. Juntando as doações de outros países e organismos governamentais e não-governamentais, o total de ajudas aos refugiados palestinianos ascende a mais de 2.000 milhões de euros anuais. Na estimativa mais conservadora, isto são mais de 350 dólares por cada refugiado que está a ser utilizado anualmente para não resolver o problema.

Muita gente pensará que é pouco (especialmente quando o dinheiro é pago por outros) mas, para por a coisa em perspectiva isto é mais do dobro da ajuda concedida, em média, por refugiado no resto do mundo. Sendo que no resto do mundo o dinheiro é gasto com o fim último de realojar as populações deslocadas. Entre 2015 e 2021 as Nações Unidas conseguiram realojar 2,1 milhões de refugiados. É um número provavelmente insignificante quando as próprias Nações Unidas reconhecem existirem mais de 20 milhões de refugiados no mundo (exceptuando a Palestina) e quase 95 milhões de pessoas pessoas no total deslocadas por causa de conflitos armados. De acordo com os mesmo dados, só em 2021, quase 6 milhões de pessoas regressaram à condição de refugiados ou deslocados, o triplo daquelas que tinham sido recolocadas, fazendo todo este esforço parecer inglório. Só que em Gaza esse número foi virtualmente zero porque, durante décadas se quis pensar que aquilo que existia em Gaza (e que se está a converter em escombros) podia considerar-se aceitável e definitivo. Isto sucede porque há milhões de pessoas em todo o mundo com a consciência tranquila porque milhões de pessoas podem continuar a viver da caridade alheia, encaramadas numa terra de ninguém, alimentando-se da vã esperança de que algum dia vão ser herdeiras da “terra onde jorra leite e mel”. Essa promessa também foi feita aos que já lá estão. E não foi só na Bíblia. Só os mesmos indivíduos que nunca se preocuparam em encontrar um sítio para os palestinianos longe de Israel é que são capazes da mesma indiferença quando chegar o dia, se chegar, em que o país dos judeus for aniquilado porque, no fundo, já estão habituados a subjugar milhões de pessoas aos seus caprichos. Se de verdade querem resolver a questão da Palestina comecem por procurar um lugar, ou lugares, para acolher 5,6 milhões de pessoas. Lugares onde estas se possam integrar e prosperar. Até porque foi exactamente isso o que os judeus fizeram e até ao momento está a resultar. Israel é um país muito mais livre e próspero que qualquer dos seus vizinhos. Quanto mais longe de Gaza, maior a possibilidade de que isso também suceda para os seus inimigos.

Nota editorial: Os pontos de vista expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não reflectem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.