“Demorei algum tempo a aprender. Somente quando percebi que tinha uma necessidade primordial de silêncio fui capaz de partir à sua procura – e, então, soterrado sob uma cacofonia de ruídos de trânsito e pensamentos, música e máquinas, iPhones e carros limpa-neves, lá estava ele à minha espera. O silêncio.” Erling Kagge

Apesar do título emprestado, este artigo não visa analisar a magistral obra de Erling Kagge, que, só de passagem, recomenda-se para todas as fases da vida, mas a forma de estar e ser do novo governo. Depois de mais de um mês, é estranho dizer que não temos muito para dizer sobre as intervenções do primeiro-ministro, porque, na realidade, foram escassas. As páginas de jornais e aberturas de noticiários não têm sido a marca desta governação. Os últimos anos da política Portuguesa, que se transformou com Sócrates na política de inaugurações e ocupação da tela televisiva, têm marcado de forma extensiva o quotidiano dos Portugueses.

Num povo calmo, onde a abstenção é uma forma singular de vida e a revolução é feita com cravos e abraços, estranha-se como tudo é política nas nossas esferas privadas. A verdade é que apenas a política do espetáculo tem direito a luz e som nos canais, que apontam aos nossos sofás. Esta característica de presença constante na política e na vida de cada um de nós faz com que o comentário seja, em Portugal, uma forma de fazer política e não de contribuir para a mesma.

No fundo, António Costa e Marcelo Rebelo de Sousa foram – este último continua a ser – ruidosos em toda a sua substância política, marcando muitas vezes a nossa forma de fazer e viver a portugalidade. Quem nunca tirou uma selfie a imitar Marcelo? Quem deixou de ver António Costa por mais de dois dias num telejornal em grande destaque? Isto não é um texto sobre o “eu nunca da portugalidade”,  mas um texto sobre o ruído que se encontra neste melodia desnorteada e pouco harmoniosa que tem sido a nossa existência política nos últimos anos. Neste sentido, André Ventura é mestre. O líder do Chega ocupa todas as plataformas, criando a ideia de que a política não passa de uma luta pelo reel mais instagramável ou o Tik Tok com os melhores óculos de sol. Mas não é apenas Ventura que olha para o ruído como a maçã da política. Vestido de rosa e tom grisalho, Pedro Nuno Santos usa de um tom operário, copiado de um filme sobre fábricas em Liverpool ou Birmingham, para demonstrar que as suas ideias baseadas em resumos de Michel Sandel correspondem aos decibéis desta espuma dos dias.

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Esta necessidade de ruído, seja ele no espaço privado ou na vida pública, é um reflexo daquilo que temos sido enquanto sociedade moderna. Aliás, George Steiner já referia, durante o seu percurso intelectual, que esta necessidade de uma cultura e forma de vida ruidosa era extremamente contrária à prossecução de um caminho de justiça e do belo. Ninguém sabe a razão do crescimento do ruído na nossa cultura, mas, a título de exemplo, uma sinfonia de Ígor Stravinski é dez vezes mais alta que Joseph Haydn. O primeiro faleceu em 1809 e o segundo em 1971. Não há dúvidas de que esta necessidade de ruído está relacionada com a configuração do espaço e do tempo. Hoje, a distância é um problema calculado e resolvido pelo Google Maps ou pela Ryanair e o tempo… Bem, esse transformou o presente num passado contínuo. Respondendo a estas transformações, e sendo a política a arte de organizar a sociedade no tempo e no espaço, procurou tonar-se cada vez mais uma forma de espetáculo, para assim assegurar a sua continuidade em cena, a toda a hora, com total visibilidade e transparência.

Governar passou a ser sobre falar de governar, debater passou a ser sobre falar da forma do debate, ideologia passou a ser sobre interpretações flutuantes e descontextualizadas da história e filosofia, pontos cardinais para qualquer interpretação. O tempo de reflexão, caracterizado quase sempre pelo silêncio, foi ocupado pela presença em direito do espetáculo. Nós deixamos de ser cidadãos e eleitores para passarmos a ser espectadores da política, que podem de forma livre escolher os protagonistas. No fundo, um Big Brother onde a Cristina Ferreira não é presidente.

Neste último mês, sentiu-se um mal-estar. De repente, alguém decidiu remeter-se ao silêncio e fazer política, governando não para a espuma dos dias, mas para a concretização de algumas medidas que os Portugueses ansiavam há muitos anos. Esta forma de estar, de ser o tempo, é estranha, mas entranha-se. Não estamos habituados a que o nosso primeiro-ministro não tenha a necessidade de ser a toda a hora capa ou peça de reportagem televisiva. Estranhou-se tanto que até o Presidente da República teve a necessidade de explicar a sua forma de ser, não a entendendo. Por saloio, este quis dizer distante da corte lisboeta que vive a ocupar Versalhes televisivo e a fazer das passagens no corredor do palácio tema para a nação. Ou seja, saloio como aquele que faz o seu trabalho porque é algo natural, não fazendo do seu trabalho natural algo tocado por Deus. Só assim a referência de Marcelo tem sentido, como um antipolítico do modelo desenvolvido pela corte Lisboeta.

Em pouco mais de um mês, ficamos a saber, de forma singela, que o Governo aprovou medicamentos gratuitos para os 140 mil beneficiários do complemento solidário para idosos, um novo programa de habitação, a localização de um aeroporto por decidir há mais de 50 anos e com infraestruturas envolventes, um acordo histórico com os sindicatos dos professores e, mais recentemente, um programa direcionado para os jovens, que sinto que, depois de conhecido por estes beneficiadores, estes exigirão da Assembleia da República a sua aprovação imediata, nem que para isso recorram às preces por Fátima, instituição maior da política portuguesa.Que estranha forma de vida deste governo, que não procura ser o todo na nossa vida, mas facilitar e diversificar ao máximo as nossas escolhas. Montenegro tem sido tão diferente que muitas vezes nem damos por ele. O seu silêncio é tão estranho que começa a ser confortável.

Perdidos no meio disto tudo, PS e Chega fazem da Assembleia da República um Big Brother televisivo. Mas até aí Montenegro esteve bem, melhorando substancialmente a qualidade dos deputados da bancada do PSD e fazendo de Hugo Soares o “trinco” com visão de jogo que tanto precisava. Este silêncio tem oferecido perspetiva, mas essencialmente tempo para vermos como a política pode concretizar coisas que foram impossíveis durante oito anos. O ruído distancia-nos daquilo que está a acontecer. Esperemos que Montenegro continue cada vez mais próximo dos Portugueses, porque neste país, que pode ser muito mais que isto, ainda há tanto por fazer. Estou certo de que, enquanto  houver estrada para andar, o primeiro-ministro vai continuar.