Nada me move contra intervenções políticas de pessoas que tiveram altas responsabilidades no Estado. De um modo geral, o País continua a necessitar da sua experiência e da sua visão. Também nada me move contra alguma dureza no discurso, quando o estilo pessoal ou a gravidade das circunstâncias o imponham. Desde que não se falte à urbanidade própria do convívio político-democrático e não se belisque a dignidade e o prestígio das instituições democráticas, quaisquer que sejam, a dureza do discurso é algo que faz parte das regras do jogo.

O discurso do pântano do Professor Cavaco Silva foi muito duro, quase cáustico, nos limites. Tanto assim é, que logo muitas personalidades da sua área política se apressaram a vir fazer comparações com o Dr. Mário Soares. Do género: “ele chamou um nome à professora, mas o outro menino também já tinha chamado”. Deve haver ensinamentos da psicanálise que explicam isto.

Não sei se algum dos dois personagens gostaria de ser visto como igual ao outro em alguma coisa. Talvez não. E, na verdade, a comparação só pode ir até certo ponto. Ambos escolheram continuar a intervir depois de deixar os altos cargos que exerceram. Ainda bem. Mário Soares até foi candidato presidencial em 2005, justamente contra Cavaco Silva. Não sei se este se prepara para se candidatar de novo à presidência, daqui a menos de 3 anos. Se não for essa a intenção, os lugares paralelos terminam aqui.

Mário Soares, que tinha uma memória extraordinária, olhava para o passado como cultor da história política, às vezes com um sentido lúdico notável. Muitos terão passado uma boa refeição ou uma viagem a ouvir histórias fascinantes sobre pessoas e acontecimentos, com desenlaces bons e maus. Mário Soares convivia notavelmente com o seu passado, não tinha nenhuma preocupação ou azedume em relação a ele. Diferentemente, Cavaco Silva parece olhar para esse mesmo passado como um baú cheio de casos mal resolvidos de inimizades, de pretensas desconsiderações, de insucessos, desvalorizando ou fazendo esquecer, certamente involuntariamente, todos os sucessos que teve como o governante que conduziu o País durante 10 anos depois da adesão às Comunidades. Isso é de tal modo óbvio, que sempre que intervém publicamente é inevitável pensar que o que o motiva não é o interesse nacional, mas a rivalidade pessoal com o atual Primeiro-Ministro, o primeiro destinatário do seu discurso.

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As considerações que antecedem não visam anular a importância da intervenção política na reunião do PSD. Sendo o Professor Cavaco Silva senhor de um inegável sentido de oportunidade política, como se pôde ver em vários momentos cruciais do seu longo percurso político, é óbvio que esta intervenção, neste momento, significa que está convicto que haverá eleições até outubro deste ano. Em boa verdade, não requer grande exercício de raciocínio perceber que a janela para uma eventual dissolução parlamentar se fecha em julho próximo. Só desse modo pode haver eleições até final de setembro ou início de outubro que permitam a um qualquer novo governo apresentar a proposta de orçamento de Estado para 2024 em tempo útil e sem atrasos de maior. Depois disso, a próxima janela abrir-se-ia no final do ano, com eleições em fevereiro ou março. Mas essa hipótese implicaria que o País estivesse em campanha eleitoral mais de meio ano, tendo em conta as europeias de junho de 2024. Muito inconveniente, portanto.

A intervenção de Cavaco Silva, com a visibilidade que o PSD lhe quis dar, tem também importância porque desvenda a auto avaliação que a Direção do PSD faz das suas próprias possibilidades. O palco dado a dois ex-Primeiros Ministros, Pinto Balsemão e Cavaco Silva, para virem afiançar que a liderança do PSD “está preparada” indicia que essa liderança sabe que poucos acham que “está preparada”. E dentro desses poucos não está, aparentemente, o atual Presidente da República, o segundo destinatário da comunicação de Cavaco Silva.

A terceira destinatária, foi, obviamente, a própria direção do PSD. E, das várias mensagens sibilinas deixadas, tenho de destacar uma: o conselho de silenciar qualquer pronunciamento sobre a política de alianças. O regresso da política de tabus não é tolerável do ponto de vista do debate e da transparência democrática. Obviamente, se houver eleições, o PSD (e o PS) têm de libertar algumas indicações sobre o que fariam se não obtivessem maioria absoluta.