O que era abundante em França é agora relativamente raro. Nos tempos originais e perturbados que vivemos, numa nação que já foi pródiga em escritores e pensadores originais, Michael Houlebecque é uma das poucas revelações literárias e Michel Onfray, um dos poucos pensadores desafiantes.

Para quem, como os da minha geração, conheceu uma França pátria da Esquerda e das esquerdas, de que se alimentava devotamente a intelectualidade “bem-pensante” local – e de que nós, os que, à direita, “pensávamos mal”, também nos alimentávamos – este relativo deserto impressiona.

Uma outra França

Éramos afrancesados e muita da literatura que então líamos ou era francesa ou vinha nas versões francesas: Stendhal, Balzac, Maupassant, Zola, Proust, Gide, Malraux, Bernanos, Sartre. E Sade, às escondidas. Foi também em edições da Livre de Poche que li La Guerre et la Paix, de Tolstoi, a Lolita, de Nobokov, e até o Great Gatsby, de Scott Fitzgerald. Os “malditos” franceses – Drieu de la Rochelle, Céline, Brasillach –, os “Hussardos” Nimier e Blondin, o “chouan” Jean de la Varande (publicado na Miniatura, numa tradução de Henrique Galvão) eram também “leitura obrigatória” durante as aulas teóricas da Faculdade de Direito, sem ofensa para a qualidade dos mestres, que era, geralmente, boa.

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No cinema – nas “semanas” do S. Jorge, do Eden e  do Monumental ou  nas sessões com dois filmes do Liz, do Imperial e do Bélgica – a França também dominava. Foi aí que descobrimos Jean-Luc Godard, Claude Chabroll, René Clement, Truffaut. Lembro-me de L’Annéé dernière à Marienbad e dos filmes de Jacques Démy, com Catherine Deneuve.

Na política, nós, os que “pensávamos mal”, começámos com a Argélia Francesa e a “batalha da OAS”, o putsch de Argel e os soldados perdidos do Império, numa mistura de idealismo dos fins e de realismo dos meios. Foi uma “école buissonière” de pensamento e acção também francesa.

De Gaulle deu a independência à Argélia, desapareceu e foi sucedido por Pompidou, por Giscard, por Chirac, por Sarkozy.  Depois, a Mitterand sucedeu Rocard, Jospin, Hollande; e de todos eles, para salvar a República, emergiu Emmanuel Macron.

Entretanto, esta cultura francesa e esta política francesa desapareceram. Não sei se (como tanta outra coisa) foram mortas pelo “império americano” ou se morreram de morte natural, só sei que se perderam e que as perdemos.

No campo das ideias aconteceu o mesmo. Um conservador liberal, como Raymond Aron, teve como discípulos os “novos filósofos”, que ficaram bem aquém do mestre; um humanista torturado e rigoroso, como Albert Camus, não deixou descendência intelectual; e até Sartre se finou nos seus continuadores, os desconstrutores dos vários esquerdismos.

À direita apareceram alguns “reprovados”, como Dominique Venner, ou um intelectual orgânico e organizador, como Alain de Benoist, que ainda há pouco se definia como “um homem de valores de direita e ideias de esquerda”. E houve depois sábios e mestres, como René Girard, que acabou por viver e escrever na América os seus grandes tratados sobre religiões e violência, a teoria mimética e o teatro de Shakespeare. Ou analistas rigorosos e perspicazes, como Emmanuel Todd, que, mais cedo que ninguém, percebeu e diagnosticou a “Queda Final” da URSS.

A “Frente Popular” de Michel Onfray

Hoje, Michel Onfray é quase caso único. É um pensador e um grande trabalhador da escrita, com mais de cem obras publicadas. É um filósofo empenhado na crítica política da Política; um crítico da Revolução Francesa e dos seus chefes, de Robespierre a Marat – que considera sanguinários, cortadores de cabeças e massacradores de povos –, mas que admira os homens da Comuna, que vê como bem-intencionados, sóbrios na violência e socialmente generosos. Para ele, “o socialismo nacional francês” do século XIX foi vítima de “deux brutes de gauche” – Adolphe Thiers e Karl Marx. Esta interpretação da Comuna de Paris é uma das suas sínteses iconoclastas. Onfray vê a Comuna como o choque de duas Esquerdas: uma esquerda operária nacional e social, a esquerda dos “communards”, dos “deploráveis, e uma esquerda burguesa, a esquerda de Adolphe Thiers e dos “versaillais” do general Galiffet, o carrasco dos “communards”.

Michel Onfray estabelece a linhagem destas duas “esquerdas”, vendo na esquerda burguesa europeísta de Maastricht – Mitterrand, Rocard, Jospin, Fabius, Hollande, Macron – os herdeiros dos “versaillais”, e identificando no PCF e na France Insoumise a herança de Marx.

Onfray fundou em 23 de Junho de 2020 a revista Front Populaire, uma revista trimestral com tiragem de 100 mil exemplares. A linha editorial da publicação é “soberanista”. Para não dar lugar a equívocos, na contracapa, por baixo dos retratos dos colaboradores (mais académicos, escritores e especialistas, que jornalistas) pode ler-se: “Front Populaire: la revue des souverainistes de droite, de gauche, d’ailleurs et de nulle part”. É uma publicação para elites, mas para elites que procurem servir o povo e identificar-se com a “França profunda”.

Onfray é uma espécie de libertário com convicções nacionais ou nacionalistas; um anarco-reaccionário ou um reaccionário anarquista que desafia e destabiliza as categorias filosóficas e intelectuais consagradas. Não parece preocupar-se muito com reflexões sobre a diferença entre patriotismo e nacionalismo, como as que recentemente ocuparam o presidente do nosso Parlamento – onde, precedendo os festejos do 25 de Abril, tivemos o Presidente Zelensky a comparar Salazar a Putin, para regozijo dos presentes –, mas preocupa-se com coisas porventura mais fundas e consequentes. As suas linhas vermelhas são outras: para ele, a divisão entre os franceses (e os europeus), faz-se entre nacionalistas, de todas as tendências, e globalistas; e as direitas e esquerdas repartem-se por estas novas fracturas. A nova esquerda abandonou os princípios justicialistas do cristianismo e do humanismo laico, causas que moviam um Albert Camus e uma Hannah Arendt, para se render ao “Wokismo”, uma importação do campus norte-americano, moldado por imitadores dos desconstrucionistas franceses – Lacan, Althusser, Deleuze, Derrida, Barthes –, a maioria dos quais arrependidos, depois do mal feito.

É contra esta ideologia “americana”, este imperialismo ideológico e político que “quer transformar o planeta num imenso supermercado” que Onfray e os seus colaboradores – que vão de Alain de Benoist e Arnaud Imatz à direita, a Jean-Pierre Chevènement à esquerda – se insurgem. Querem que conceitos como “povo”, “popular”, “nação”, “soberanismo”, “proteccionismo” deixem de ser insultos e passem a ser temas de debate:

 “O pensamento dominante não respeita o que é diferente e trata toda a oposição de modo dispersivo, caricatural ou agressivo. A “reductio ad Hitlerum” é a lei. Insulta-se, caricatura-se, deforma-se, despreza-se, censura-se, falsifica-se, apresentam-se informações como intox, e intox como informação … Queremos fazer ouvir uma voz alternativa.”

O “foutriquet”

Curiosamente, ou talvez não, a realidade política em França acabou por se configurar, no terreno, no combate entre o globalista Macron e a nacionalista Le Pen, com os candidatos “populistas” de direita e de esquerda – Le Pen, Zemmour, Mélenchon – com mais de 50% do voto popular na primeira volta, enquanto as direitas do sistema, os republicanos, e as esquerdas do sistema, comunistas e socialistas, não chegaram aos 10%.

Macron, um liberal em economia que, em Janeiro deste ano, fez questão de apresentar como prioridade europeia a consagração do “direito ao aborto” como direito fundamental, é o último reduto do globalismo de Maastricht e um exemplo típico dos novos “condutores dos povos”. Congratulando-se com a abolição da pena de morte nos países da União Europeia, o líder da “República em Marcha” no seu discurso ao Parlamento Europeu, não hesitava em proclamar a urgência da instituição da pena de morte para os nascituros da União (possível antecâmara para a urgência da instituição do direito à morte medicamente administrada aos velhos e aos desesperados da União).

Foutriquet é o livro-panfleto de Michel Onfray em vésperas de eleições – e o “foutriquet” em questão é Emannuel Macron.