Uma das questões que sempre me intrigou foi a falta de orgulho no que os empresários agrícolas portugueses têm alcançado nos últimos anos. Penso que nunca vi um dirigente político de primeira linha chegar à televisão, em “prime time”, e dizer com orgulho que o mundo agrícola português conseguiu alcançar este ou aquele resultado.
Apesar do desinteresse geral, alguma coisa está a acontecer. Lenta, mas inexoravelmente, verifica-se uma mudança na estrutura da propriedade e da produção agrícola. As unidades agrícolas são progressivamente maiores e progride a organização empresarial. Aumentam as culturas permanentes como o olival, o amendoal, as culturas subtropicais e os pequenos frutos. Muito impulsionado pelo Alqueva, mas não só, Portugal é autossuficiente em azeite desde 2014, e já é o 6º maior produtor mundial, com exportações sempre crescentes em valor. Na amêndoa somos já o sexto produtor mundial e a margem de progressão está assegurada nos próximos três anos.
Francisco Avillez, um conhecedor profundo da economia agrária fez um balanço da evolução da economia agrária nos últimos sessenta anos. Destaca os aspetos mais relevantes da década 2012-2022: “Enorme resiliência demonstrada pela agricultura portuguesa face às sucessivas crises […] a sua capacidade para responder do ponto de vista produtivo, tecnológico e estrutural aos desafios […] da qual resultaram os mais favoráveis resultados económicos sectoriais e empresarias das últimas décadas.” Sublinha na conclusão de que o processo de inovação é, na última década, o principal responsável pela melhoria significativa observada no desempenho económico, a par da importância das práticas agrícolas ambientalmente mais sustentáveis.
Estamos assim longe do tempo em que se afirmava a eito que o problema da agricultura portuguesa era a União Europeia, porque desincentivava a produção. Que os subsídios só serviam para destruir a capacidade agrícola, antes florescente. Que já não eramos capazes de produzir o que comemos. Sendo assim, os resultados alcançados pelas empresas agrícolas na última década, deveriam ser um motivo de grande satisfação nacional. Não são.
Porque é que não podemos mostrar satisfação com o contributo crescente da produção alimentar nacional? Aparentemente, porque quem está a conseguir aumentar a produção agrícola não são os “verdadeiros agricultores”, mas o famigerado agronegócio, que encara a agricultura como uma oportunidade para “ganhar dinheiro” e apenas se concentra nas culturas mais rentáveis e não naquelas que o imaginário coletivo associa à tradição agrícola do país. Mais um pecado que se junta aos dois braços da cruz que os empresários agrícolas têm de carregar: a condução intensiva e o esbanjamento de água.
Uma passagem mesmo breve pelos jornais ou pelas páginas da internet não parece deixar dúvidas: as empresas agrícolas estão a tomar conta do mundo rural, destroem os solos e gastam água sem amanhã. Iniciativas como o Alqueva são mais prejudiciais do que benéficas e acentuaram a velocidade com que a agricultura “verdadeira” está a desaparecer. É assim normal que surja a indignação, e que os dirigentes políticos, sempre cautelosos, mantenham reserva.
Para muitos o orgulho está num passado onde a fome grassava nas aldeias e nas herdades. Outros imaginam as virtudes da vida pobre, com a família reunida à noite à luz da candeia, outros acham que a boa agricultura é a dos pequenos produtores que amanham uma pequena courela de terra para sobreviver. Os mais sofisticados idealizam uma parte dos portugueses a viver nas zonas rurais à custa do pagamento dos “serviços do ecossistema”. Os recursos para tal viriam seguramente do milagre europeu, ou do poço sem fundo do Orçamento de Estado.
Felizmente o futuro não passou por aí. A agricultura industrializada é hoje mais eficiente e a especialização em culturas mais rentáveis permite compensar algumas das deficiências estruturais como a qualidade dos solos e a fisiografia difícil. É claro que uma exploração dirigida de forma predatória pode conduzir ao que os geólogos chamam “lavra gananciosa”, e esgotar rapidamente os recursos que a tornaram viável. Em todas as situações o uso displicente da água na produção agrícola é um crime ambiental e económico. Contudo, no espaço europeu e numa escala como a portuguesa, os organismos reguladores têm a obrigação de supervisionar com transparência ambas as práticas e prestar aos cidadãos informação verdadeira e representativa. O papel da monitorização rigorosa deve ser acautelado. O acompanhamento do impacto social das mudanças que estão a ter lugar tem igual importância.
A condução de um modo de produção agrícola de “precisão”, com mais tecnologia e uma utilização muito controlada de água, exige uma capacidade financeira significativa que só pode ser alcançada por atores económicos relevantes ou por associações competentes de produtores. Tem todos os riscos de qualquer atividade económica, quando se expõe ao mercado, a que se somam os riscos provenientes da dependência do mundo natural. Foi já percorrido um longo caminho de reorganização e modernização e a agricultura é hoje um universo tão inovador como a indústria ou os serviços. Existe um futuro possível e há quem o esteja a trilhar.
Todas os pontos de vista devem ser ouvidos e todos são importantes. Temos de dar margem à contestação, e a diversidade de opiniões faz parte da construção democrática das decisões coletivas, mas não podemos ter a memória do peixe encarnado, sempre à volta, confundindo o seu aquário com o mundo. Devemos ter orgulho nos empresários agrícolas portugueses. Tudo o resto são preconceitos.