Tivemos eleições recentemente e o futuro de Portugal foi pensado e equacionado por diversos políticos, ilustres representantes dos múltiplos setores da economia e destacadas personalidades da sociedade civil, pelo que tentarei dar o meu modesto contributo, com uma visão necessariamente enquadrada pelas atividades que desenvolvo a nível empresarial.
Antes de me deter sobre alguns dos aspetos que considero mais relevantes em torno do setor da arquitetura, que acompanho de forma próxima, enquanto cidadão, tenho naturalmente uma opinião sobre alguns dos desafios que Portugal enfrenta, bem como sobre os principais obstáculos a ultrapassar.
Nesse sentido, a reorganização do Estado é essencial e reveste múltiplas dimensões. A mais importante de todas é naturalmente a dos Recursos Humanos. É determinante o Estado assumir a captação de talentos e a sua fixação na Administração Pública como elemento essencial para a qualificação dos serviços públicos. Para o efeito, torna-se imperativa a valorização, a capacitação, o rejuvenescimento e o robustecimento da Administração Pública e dos seus trabalhadores.
Julgo ser consensual pretendermos “menos Estado e melhor Estado”, ou seja, dispormos de serviços públicos de qualidade, capazes de dar as respostas que os cidadãos e as empresas exigem, com celeridade, eficácia e proximidade. Além da sensibilidade própria de quem trabalha nos organismos do Estado, é fundamental existir o compromisso de assegurar um serviço público de excelência.
Num outro plano, a solidariedade e o apoio a quem mais necessita constitui um enorme desafio das sociedades modernas. Está em causa a promoção de uma abordagem centrada nos direitos humanos e na realização da dignidade da pessoa humana, facilitando a inclusão e a integração de todos na sociedade, reduzindo as desigualdades.
Neste contexto, assume especial relevância a resolução da importante questão da habitação, centrada nas pessoas em situação de sem-abrigo, por forma a que ninguém tenha de permanecer na rua por ausência de alternativas. Esta é uma área muito querida na minha atividade e onde a arquitetura tem por missão clara melhorar a experiência de vida e o conforto das pessoas, interagindo com a sua envolvente de forma mais sustentável.
Em relação às áreas em que Portugal deve apostar, são diversos os setores onde dispomos seguramente de vantagens competitivas, geradores de valor acrescentado, caso do turismo, da energia, novas tecnologias, mobilidade e atividades de exploração dos oceanos, em face da nossa vasta costa marítima.
Apesar de Portugal não poder ser um país apenas de serviços, um modelo de desenvolvimento económico mais sustentável e coeso só será alcançado se considerar as atividades de serviços, até porque não depende diretamente de recursos naturais, sendo essencial uma colaboração efetiva entre o setor público e o privado. Revela-se ainda essencial o aumento das qualificações da população, bem como o investimento empresarial em investigação, desenvolvimento e inovação.
Focando agora no setor onde exerço atividade, a arquitetura é uma área muito dependente dos ciclos económicos, estando a performance das empresas intrinsecamente associada a diversos fatores externos, nomeadamente ao investimento nacional e internacional no nosso território. A este propósito, as alterações fiscais, de que constituem exemplo o fim dos vistos Gold e do programa dos Residentes Não Habituais traduzem medidas que contribuem para afastar uma parte substancial dos investidores estrangeiros. Refira-se ainda que a confiança e a estabilidade legislativa e fiscal, entre outros fatores, são essenciais nas decisões de investimento, com reflexo no setor da arquitetura.
A grande maioria dos operadores económicos do setor da arquitetura em Portugal são micro e pequenas empresas que se defrontam, de forma constante, com um conjunto de desafios, a um ritmo cada vez mais acelerado e exigente. Esta característica, relacionada com a dimensão das empresas, dificulta bastante a internacionalização das mesmas.
Ao nível dos Recursos Humanos, a atividade de arquitetura enfrenta algumas dificuldades em recrutar quadros qualificados, sendo cada vez mais diminuto o número de estudantes que anualmente termina estes cursos em Portugal. Acresce que o arquiteto dispõe hoje de outras opções para exercer atividade, abandonando a prática tradicional de arquitetura, o desenho, que é pouco reconhecida e valorizada, com níveis de remuneração pouco atrativos. São assim áreas onde a Ordem dos Arquitetos necessita tornar-se mais presente e visível, em prol da defesa do setor e dos respetivos profissionais.
Em termos legais e regulamentares, e com aplicação direta ao setor da arquitetura, merece destaque a recente entrada em vigor do Decreto-Lei 10/2024, de 8 de outubro (vulgo “Simplex Urbanístico”), que introduz uma serie de alterações profundas aos licenciamentos no âmbito do urbanismo, ordenamento do território e indústria.
A crescente exigência dos clientes, o aumento da concorrência internacional e as novas disposições jurídicas aplicáveis ao setor, que envolvem igualmente a criação e adaptação de sistemas informáticos e o acréscimo de responsabilidade dos arquitetos, vai necessariamente implicar uma reorganização do setor, com um movimento expectável de fusões entre ateliers, à semelhança do que ocorreu com outras profissões liberais. Sendo a arquitetura uma atividade com relevante função social e cultural, todos estes fatores são essenciais à dignidade, à valorização profissional, científica e ao prestígio do arquiteto.
Serão assim valorizados e destacar-se-ão os ateliers devidamente estruturados, com uma gestão e organização profissional, com um corpo técnico competente e multidisciplinar. Empresas cuja dimensão permite responder aos clientes com qualidade e inovação, de forma atempada, responsável e eficaz, prestando ainda todas as garantias e acautelando o cumprimento das obrigações legais e fiscais, contributivas e regulatórias. Só assim poderemos promover a valorização e afirmação de um tecido empresarial moderno competitivo, capaz de responder aos desafios tecnológicos e digitais, e capacitar os profissionais, incentivando a procura de soluções ambientalmente sustentáveis.
A prática profissional de arquitetura, nomeadamente decorrente do novo enquadramento legal, exige a prestação de seguros que só estão ao alcance de empresas estruturadas e confiáveis, que consigam acautelar os meios e as condições necessárias de mitigação de riscos junto das instituições financeiras e seguradoras.
A arquitetura é hoje uma área em profunda transformação, sendo indutora de um processo de transformação social e ambiental, de forma a melhorar a qualidade de vida nas cidades, tornando-as mais inclusivas e saudáveis. Ao nível da sustentabilidade, é exigido aos arquitetos um acompanhamento permanente e uma visão sistémica da sociedade, dando cada vez maior atenção aos novos materiais, à economia circular, a novos processos construtivos, como a construção off-site e modular, à maior eficiência energética e conforto térmico. Características que exigem das empresas do setor um investimento significativo em investigação e inovação, com respeito pelo ambiente, e uma maior aposta na qualificação e capacitação dos recursos humanos.
Ao nível da transformação digital, prevê-se o uso de novas ferramentas de Inteligência Artificial, com aplicação crescente no nosso setor, embora com desafios ao nível da cibersegurança e na forma como esta tecnologia deve ser regulada.
A ano de 2024 apresenta enormes desafios para o setor da arquitetura, da promoção imobiliária e da construção, tanto para o sector privado como para o setor público, merecendo aqui destaque a execução do Plano de Recuperação e Resiliência (PRR), de extrema importância na nossa sociedade.
Num momento crucial que atravessamos na nossa sociedade, é fundamental dispormos de um setor público dinâmico, sendo essencial o compromisso de todos. As grandes nações não se fazem com casos únicos e isolados, mas com base num compromisso global, onde o respeito e a colaboração mútua estão sempre presentes.
Miguel Saraiva é arquitecto, fundador do atelier (hoje denominado) Saraiva + Associados, de que é CEO. É autor dos projetos dos Campus da Justiça de Lisboa e do Porto, do edifício-sede da Polícia Judiciária e do Hospital Beatriz Ângelo, entre outros em Portugal. É membro do Clube dos 52, uma iniciativa no âmbito do décimo aniversário do Observador, na qual desafiamos 52 personalidades da sociedade portuguesa a refletir sobre o futuro de Portugal e o país que podemos ambicionar na próxima década.