John Stuart Mill, no seu célebre ensaio sobre a liberdade de 1859, lembra que Sócrates, a figura mais venerada da filosofia e do pensamento Ocidental, inspiração máxima de Platão e Aristóteles, o homem tido como o mais virtuoso do seu tempo, foi acusado, entre outras coisas, de perverter a cultura e os espíritos dos jovens. Tal crime condenou-o à morte. Mais tarde, continua Mill, Jesus, também ele tido como o mais sábio dos homens, senão mesmo, como para os Cristãos, a encarnação humana de Deus, foi igualmente condenado à morte por blasfémia. Em comum nestas duas sentenças? Serem as palavras e ensinamentos dos acusados que, contrários ou incómodos para os poderes dos seus tempos, lhes custaram a vida.

Com o tempo, estes dois julgamentos hoje vistos como bárbaros, cruéis e injustos compuseram os alicerces da base moral Ocidental onde a culpa e o arrependimento explicam muito como construímos todo um aparelho moral, político e legal que, mais que impor verdades e doutrinas, se preocupa acima de tudo em proteger as pessoas dos abusos do poder. Assim é da perspectiva moral quando organizámos os nossos valores em função da absoluta defesa da dignidade e protecção da pessoa humana, assim é quando baseámos as nossas instituições políticas em direitos individuais, assim é quando oferecemos todas as garantias legais a toda as pessoas, desde a forma como putativos criminosos são tratados até ao facto de o ónus da prova residir sempre na acusação, e nunca no acusado.

A democracia, em particular a sua variante “liberal” ou “Ocidental”, nasce precisamente destas particulares e preciosas circunstâncias: não seria possível construir um sistema assente na vontade popular, ou seja, onde o poder emana de baixo, das pessoas, para cima, para a oligarquia dirigente, sem que a legitimidade moral estivesse também ela acoplada nas pessoas, neste caso na figura abstracta do “indivíduo”. É, pois, no indivíduo e na protecção deste através dos seus direitos, liberdades e garantias que se baseia a democracia tal como a conhecemos, precisamente para que todos nós — cada um, enquanto pessoa — estejamos a salvo de semelhantes destinos àqueles que Sócrates e Jesus, injustamente, enfrentaram nas suas respectivas sociedades.

Voltemos aos dois julgamentos. Em boa verdade, foram motivados por palavras proferidas. Nenhum dos acusados foi um perigoso terrorista, não roubaram, não mataram, nem sequer incitaram a que se aterrorizasse, roubasse ou matasse. No final, tanto num caso como no outro, independentemente dos preceitos legais invocados pelas acusações, quando bem analisados os casos, ambos foram condenados por delito de opinião. Eis em todo o seu esplendor a origem do poder mítico da palavra e do discurso que torna ainda hoje no Ocidente a questão da “liberdade de expressão” fundamental, se não mesmo fundacional. Mais, se a legitimidade política advém do povo, das pessoas, e é de baixo para cima que se constrói o sistema democrático, então como não garantir que essas mesmas pessoas, esses mesmos indivíduos que compõem a comunidade, são livres de pensar, dizer e falar o que lhes aprouver?

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De facto assim é. Não pode haver liberdade individual onde as pessoas não possam dizer o que bem entenderem. Concomitantemente, sendo o indivíduo a fonte de legitimidade da democracia liberal, portanto toda a sua razão de existir, quando não sendo dele o poder de regular a sua própria expressão, tal coisa apenas pode significar que também já não é dele o real poder político. Assim, quando a liberdade de expressão, por decreto ou por que razão for, se vê regulada, limitada, cortada, mesmo que em nome do povo e da legitimidade popular, a única conclusão é que o poder político já não reside no povo, mas foi entretanto, de forma ilegítima e não-democrática, usurpado por quem lhe regula aquilo que pode ou não dizer.

Quem manda aí, então? Na verdade, não interessa. Poderá até ser uma maioria política imaginada como esclarecida e democrática porque majoritária, mas não deixará de ser uma maioria que não tem pejo em atropelar em nome das suas crenças e opiniões os direitos que, reservando para si, retira àqueles que não compõem essa maioria. De facto, é precisamente para acautelar tal situação que no Ocidente se evoca o carácter absoluto e universal dos nossos direitos fundamentais: para que ainda que a maioria censória e autoritária fosse a de todos na sociedade menos apenas um e aquela ainda assim seria injusta, pois é com a protecção desse “um” que a legitimidade política das nossas democracias assentes em direitos individuais se preocupa. Aliás, não foi precisamente a turba majoritária, às tantas já em coro, que confirmou a libertação de Barrabás e condenou Jesus à Cruz e à morte?

Stuart Mill, para quem o valor máximo da sociedade é a utilidade, ocupa-se também a explicar como da livre discussão aberta a todas as opiniões deriva um bem comunitário e social na medida em que a arena da franca e honesta discussão tratará de descartar naturalmente as más ideias enquanto fortalecendo aqueloutras que são boas por serem capazes de resistir ao teste da crítica e do escrutínio. Tinha, e tem, razão. No entanto, por trás da utilidade que a liberdade de expressão trouxe ao Ocidente, por baixo de todo o florescimento de conhecimento científico, filosófico e cultural que a livre troca de ideias permitiu, ainda assim, aquilo que mais justifica essa pedra basilar da democracia não pode deixar de ser aquilo que ela significa para a moralidade da própria liberdade: lá no fundo, consola-nos a bondade desse valor supremo da liberdade de expressão que, se instituído à altura, teria salvo Sócrates e Jesus, assim nos redimindo daqueles dois terríveis crimes cometidos pelos nossos antepassados.

Após a grande guerra civil Ocidental (1914-45) que arrastou o mundo inteiro para o caos, destruição e morte, por em oposição garantir paz, abastança e segurança, o estabelecimento da democracia liberal, e a correspondente apologia da liberdade de expressão, como padrão de virtude moral e política internacional foi inexorável, chegando inclusive a Portugal, ainda que com o habitual atraso, em 1974. Depois, com a queda da URSS e do Muro, nos últimos 40 anos, colocar em causa esta suprema conquista no Ocidente, mesmo em Portugal, sempre apareceu à generalidade dos comentadores, jornalistas e políticos como perigoso, talvez bizarro e, sem dúvida, merecedor dos epítetos “fascista” ou “autoritário” que tanto abundam na discussão pública — nesse caso com razão.

No entanto, o mundo mudou. Ofuscado pelos avanços da ciência, desde há muito que germina no pensamento Ocidental a ilusão de que a ciência traz consigo a solução para os problemas da Humanidade, incluindo os morais e políticos, imaginando-se hoje que aquilo que o “cientista”, o “perito” ou o “especialista” afirma é invariavelmente factual. “Um novo estudo revelou que” representa agora o supremo argumento de autoridade que, alegadamente, revela a verdade ao mundo. Substituindo a batina preta pela bata branca do cientista, o povo, sem se aperceber, substitui também o dogma e, onde antes reinava a religião, em particular, no nosso caso, a Cristã que afirmava não se querer meter nos assuntos políticos — “Dai, pois, a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus.” (Mateus 22:21) —, passa agora a reinar o cientismo que, por oposição, faz questão de meter o bedelho em todos os assuntos.

Assim chegámos a um ponto em que o debate público deixou de versar sobre diferentes opiniões, todas elas tidas como legítimas — as que assim não eram consideradas acabavam marginalmente reduzidas aos pequenos recantos escuros dos cafés —, para uma nova situação onde tudo o que se discute é “quem é que tem razão”, no caso a científica, ou seja, quem é que é o fiel intérprete da Verdade. Ora, como as verdades não se discutem, apregoam-se, e agora tornado todo o bicho careta político numa espécie de missionário guardião da “boa governança” científica, ignorando todos eles que a boa ciência é aquela que se discute e se contesta perpetuamente a si própria numa exercício de dúvida infindável — bastaria ter lido Karl Popper —, perante a agitação turbulenta das massas divididas entre múltiplas verdades cada qual assente no seu respectivo “estudo”, “cientista” ou “perito”, logo os poderes que são começaram a perceber que mau, mau, mau mesmo, é a liberdade de expressão e o povo ignorante que não aceita, ou que simplesmente coloca em causa, a versão oficial do “consenso científico” certificado pelo Estado e propagandeado pela imprensa.

Primeiro com o COVID para “salvar a avó”, depois com as “alterações climáticas” para “salvar o planeta”, mesmo que a narrativa única mediática e política, seja ela financiada, influenciada ou manietada por quem for, se tenha caracterizado pela constante e indecente falta de verdade, de competência ou simples coerência — o que é verdade num dia frequentemente deixa de o ser no outro —, nem mesmo assim, depois de incontáveis estragos e asneiras cometidas, os medíocres políticos Ocidentais largam um discurso que, com excepções paradoxalmente descartadas  pelo mainstream como “fascistas”, “racistas” ou simplesmente “negacionistas” da verdade, afirma hipocritamente a “desinformação” e as redes sociais por onde ela alegadamente se propaga como os grandes perigos para a democracia. Em suma, domada a comunicação social que fala agora estridentemente em uníssono com o poder político, sobra domar quem ouse colocar em causa a “verdade” certificada a carimbo “pelas autoridades competentes” — e tudo “para o nosso bem” e das nossas democracias.

A moda pegou lá fora nos meios mais fanáticos do culto progressista e tecnocrata e, claro está, não poderia deixar de chegar, como de costume atrasada e a reboque, aos arrabaldes lusitanos. Assim se explica que esta semana, de dedo estendido, convicção firme e palavra forte, enquanto anunciava a subsidiação generalizada dos órgãos de comunicação social pelo Estado — que assim dele agora passará ainda a depender mais, efectivamente liquidando a liberdade e independência da imprensa —, o Primeiro-Ministro português, não satisfeito, ao arrepio de qualquer sensibilidade ou consciência democrática, resolveu imitar a chefe burocrata de Bruxelas e declarou: “as redes sociais são o inimigo da democracia”.

Que em Portugal se repita o que se faz lá fora, é um hábito. Que não haja grande pensamento, capacidade crítica ou coragem na classe política indígena para ir além dos ditames da bolha mediático-política ou, pior, que não exista uma identificação real e consciente com os valores democráticos e da liberdade, tudo isso é verdade. Agora que um Primeiro-Ministro, ainda para mais um que se identifica como sendo o líder do espaço não-socialista, tenha o topete de vir anunciar que a livre discussão do povo nas redes sociais é que é o inimigo da democracia, isso apenas revela que, de facto, a democracia e a liberdade estão mesmo em perigo. Não porque no mundo digital — tal como antes nos cafés, nos panfletos ou nos bancos de jardim — circule de tudo, desde boa informação e opinião até às mais insanas proposições políticas ou epistemológicas, mas porque, aparentemente, na cabeça do líder político do país, a censura, o fim da liberdade de expressão e o estabelecimento de uma forma política para regulamentar o que é permitido dizer ou não no espaço público — uma espécie de ministério da verdade que decide e define o que é “desinformação” — é algo que faz sentido e não há ninguém que lhe tenha de imediato explicado o óbvio: que neste momento o perigo para a democracia é ele.

Nota editorial: Os pontos de vista expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não refletem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.