Quando Deus disse a Adão para não comer da árvore do conhecimento do Bem e do Mal aquele foi advertido de que a infracção a esse comando resultaria na morte. Hoje, é certo, num mundo “científico”, “racionalizado”, tal episódio, assim como o resto da narrativa, aparecerá à maioria como ridículo, uma simplória historieta própria de povos primitivos, incivilizados e, consequentemente, ignorantes. Ainda assim, sobra sempre alguma perplexidade: afinal, como poderia fazer sentido, mesmo para bárbaros irracionais, ser proibido, e punível por Deus, alguém obter conhecimento sobre o mundo, em particular acerca do Bem e do Mal, ou seja, sobre a base da moral que todos deveriam seguir?

A resposta a esta questão talvez resida não tanto na interdição em si mesma, mas no momento da vida em que a imaginamos postulada: se, intuitivamente, rejeitamos a condenação à ignorância também é verdade que dificilmente concordaremos que seja correcto exporem-se todos os indivíduos — imagine-se uma criança, por exemplo — a todo o conhecimento, sem quaisquer restrições. Aliás, tanto assim é que na nossa sociedade criámos inúmeras limitações — quer de acesso a informação, quer de frequência de certos espaços, até mesmo de direitos sociais e políticos — baseadas precisamente na idade, isto porque o mundo revela-se às crianças, junto com suas tragédias, de forma gradual e lenta, normalmente adoçado sob o manto aconchegante e introdutório de tradicionais alegorias infantis que disfarçam a nua e crua realidade em cambiantes tão básicas quanto a reprodução ou, mais relevante, a própria condição existencial humana marcada pela inevitabilidade da morte.

À criança, o mundo apresenta-se, portanto, sempre a seu tempo, um tempo que é próprio a cada civilização e cultura, um tempo normalmente ritualizado, quando não sacramentado. Olhando desta perspectiva para a queda do Paraíso vislumbramos uma outra história, no caso a narrativa primordial de amadurecimento tradicional judaico-cristã — uma “coming of age story” ancestral sobre a passagem do estado infantil, ignorante sobre si e o mundo, para o adulto que sabe distinguir “o Bem do Mal” —, ganhando a cena do fruto proibido, e consequente condenação divina, todo um outro significado.

Desde logo, a questão simbólica. Além da serpente ali representar o dragão no mito clássico do herói que traz consigo o caos do desconhecido — no caso, a vida adulta que vem perturbar a tranquilidade protegida da vida infantil —, repare-se também ser um fruto maduro, um símbolo de fertilidade facilmente associado ao estado pubescente, que configura aquilo que impele Adão e Eva para a maioridade, altura em que aprenderão sobre os certos e errados, é certo, e daí a árvore do Bem e dos Mal, mas também uma nova realidade na qual, cobrindo-se porque já sexualizados, lhes revela finalmente a sua condição: nua, agora também sexual, mas desde sempre frágil, perene, limitada e dolorosa.

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Assim, a proibição, ou o tabu, deixa de parecer apenas castrador, ou limitador, para se tornar, de certo modo, protector. Aliás, Deus, omnisciente, saberá forçosamente que, a seu tempo, aquele comando será infringido. Assim sendo, ficando a “infracção” dependente do livre-arbítrio e da vontade humanas, responsabilizando-os, percebemos que aquela ocorrerá quando os homens estiverem já preparados, mesmo que apenas inconscientemente, para enfrentarem as consequências do seus actos — ou seja, para “voarem do ninho”, “caírem” do paraíso infantil e enfrentarem o mundo real, começando, desde logo, pela aceitação da sua condição mortal.

Ora, mas não era precisamente esse o aviso divino? Que o fruto proibido traria consigo a morte? Assim vendo, ao invés do Deus que “condena” à morte o Homem por este ter comido o fruto proibido, não será o relato muito mais sobre a forma como o Homem, na queda do paraíso infantil, ao aprender sobre si próprio e a sua condição, inevitavelmente, reconhece a realidade da sua existência? — finita, periclitante, essa sim condenada?

Vendo por este prisma, o paraíso bíblico afinal nunca seria eterno e a queda apenas trata da forma como, a seu tempo, para o Homem, a ilusão infantil do paraíso perpétuo será sempre substituída pela realidade humana adulta, ali simbolizada como queda na medida em que representa um reconhecimento que, não obstante fundamental para atingir a maturidade, não deixa de ser profundamente trágico. No entanto, essa é a meta-narrativa que nos rege a todos — nascidos no “paraíso” infantil, “caídos na real” quando adultos —, uma meta-narrativa que, precisamente por ser universal, confere um certo grau de “verdade” à narrativa bíblica que os tempos modernos do nosso Zeitgeist têm muita dificuldade em sequer vislumbrar.

Ao mesmo tempo, essa mesma meta-narrativa orienta, também, num conceito abstracto e universal, aquela realidade particular familiar onde cada criança deverá ser integrada num processo de educação e amadurecimento, assim se estruturando e fortalecendo até ao ponto onde, por si própria, questionando a sua realidade, ganhe a capacidade, e coragem, para cortar as amarras com o uroboros — o colo materno que protege até se tornar sufocante — e conquistar, por própria decisão, a sua independência. Naturalmente, parte dessa protecção, e tal como o fruto proibido e o facto de Adão e Eva se cobrirem mal caídos no mundo salienta, revela-se na sexualidade: desconhecida à criança, interdita na puberdade, autorizada, mas ainda limitada, após a maioridade.

Assim visto, deste episódio bíblico se podem retirar, pelo menos, dois eixos fundamentais para a moral Cristã que, até há muito pouco tempo, nos educou rumo à idade adulta: primeiro, que, enquanto criança, a sexualidade é dos assuntos aos quais, por força da sua importância, maior protecção e limitação deverá exigir; depois, que a criança deve ser protegida e educada apenas até que seja forte o suficiente para enfrentar o mundo, altura em que, tornada adulto, o deverá fazer por si próprio, de forma absolutamente independente e auto-responsável.

No entanto, hoje em dia, ao invés de lareiras e fogões em redor dos quais as famílias se juntem para partilhar uma cultura ancestral assente numa moral particular destilada em narrativas como esta, a sociedade moderna entretém-se, atomizada, nos curtos metros quadrados dos respectivos quartos de dormir, de comando na mão, mirando o mundo, de longe, em isolada segurança geométrica, através dos ecrãs azulados e frios da TV, ou do smartphone, que a ciência, mágica e quase-divina, nos ofereceu. Naturalmente, em tal contexto, a meta-narrativa bíblica, tal como todos os mitos ancestrais, vê-se desprezada e jogada à insignificância da sua irracionalidade religiosa, tida agora como patética, bafienta e inútil.

Pelo contrário, a nova sociedade, assumida como “racional” e libertadora, trata hoje em dia de perverter os dois eixos acima referidos. Desde logo, hipersexualizada, obcecada de modo maníaco com o sexo ao ponto de por aí pretender definir a identificação de cada indivíduo — agora pressurosamente rotulado, catalogado, colorida e alfabeticamente organizado em função das suas preferências sexuais —, é uma sociedade que, progressivamente, não apenas levanta todos os tabus e limites impostos pela velha moral — os tais que pretendiam proteger e limitar —, como, mais relevante, precisamente porque associou a identificação individual à sexualidade, assim expõe, ou pretende cada vez mais expor, crianças, infantes, e até bebés, às temáticas da nova moral sexual, em muitos casos já com carácter de obrigatoriedade, forçando, inclusive, à tomada de posição ainda infantil sobre a “preferência sexual”, isto como se de uma livre e alegre escolha num cardápio se tratasse.

Deste modo, a anterior estruturação identitária dá agora lugar a uma crescente indefinição, até por abertamente se promoverem, inclusive na escola, adornadas a arcos-íris, novas e ridículas teorias que afirmam, entre outras bizarrias, o género como sendo independente da realidade biológica e cromossomática de cada indivíduo, num pseudo-científico aprofundamento da “libertação” individual, agora numa variante biológica face aos constrangimentos do próprio corpo. Ao mesmo tempo, o outro eixo é igualmente invertido, apenas que pelo outro lado: desde os progenitores ultra-protectores, até à progressiva substituição da família pelo Estado, agora tido como incubadora tipo ama-seca, o famoso “nanny state” que, crescentemente, se impõe, “para o nosso bem”, do berço até ao caixão, assim se promete um mundo novo que, alicerçado no “safe space” e na harmonia que o discurso social unânime — agora devidamente controlado, necessariamente amável, afável, nunca odioso nem quezilento —, garante uma sociedade pingando fraternidade, igualdade e, naturalmente, como valor máximo, “liberdade” — a liberdade social igualmente máxima, aquela do indivíduo face a qualquer forma de sofrimento, agrura ou dificuldade.

Deste modo, por cima das pessoas, se ergue o Estado máximo liberal ora anunciado: quando um pobre desgraçado sofre com o corpo, logo a comissão trans-humana resolverá cortando genitais e subsidiando hormonas e cirurgias plásticas; se o infeliz ressabiado sofre pela rudeza do vizinho, a repartição tratará de exigir reparações, ao mesmo tempo que regula o discurso e extermina a “discriminação” e a maldita “desinformação”; se o sofredor ressentido se enerva com o vizinho mais abastado, o fisco garantirá a “justiça social”, redistribuindo o saque tributário para felicidade generalizada — enfim a “paz perpétua”.

Em suma, onde antes, seguindo o mito bíblico, se protegia a criança para mais tarde gerar força e independência no adulto, assim cultivando uma sociedade igualmente forte e independente, portanto livre, agora faz-se o inverso: primeiro, tudo se expõe a todos sem pudor, dissolvendo-se os infantes na fluidez imediatista e disforme que mina a priori as bases formadoras e estruturais da criança; depois, esta, desestruturada e sem responsabilidades próprias, agarrada ao uroborus, desprotegida e imprecatada face ao mundo, quando nesse finalmente largada acaba procurando, a posteriori, o habitual amparo, agora no regaço ultra-protector do Estado. Hélas, solve et coagula em versão liberal: onde antes indivíduos fortes e independentes geravam sociedades livres e corajosas, agora a dependência, o infantilismo e a negação da tragédia do mundo impelem a turba para a autoridade reguladora do Estado.

Ainda assim, o ideal do “safe space” ora prometido, junto com a utopia científica da vida “liberta” de dor — desde o nascimento por cesariana, passando pelo ansiolítico, ou a ritalina, o botox quando as rugas aparecerem, culminando na injecção libertadora da eutanásia — reflecte, mesmo que em versão pervertida e abreviada, a vida bíblica anterior à descoberta do Bem e do Mal — supostamente abundante, plena, pura, harmónica, “feliz”, perfeita, pejada de certezas, sem necessidade de decisão individual sobre o Bem e o Mal própria dos adultos, logo sob rigorosa e infalível autoridade, agora do Estado, que, através da TV, do perito e do cientista impõe limites, decide os interditos e, claro está, garante protecção.

No fundo, a promessa perversa e pervertida da suprema libertação é a da infantilidade perpétua, desta feita satisfeita no conforto do útero materno, agarrada à mama e ao colo, a expensas da responsabilidade, e com ela a liberdade, individuais — um contra-senso, naturalmente. O slogan, no entanto, é simples: obedecei ao novo dogma, respeitai os limites politicamente correctos e nunca terás que crescer e enfrentar a agrura do caos e do desconhecido, quedando-te no regaço da unanimidade social, debaixo da alçada do Estado, ou seja, no novo paraíso. Do mesmo modo, se infringires a nova lei, a nova queda revela-se no opróbrio social, na suspensão da rede social ou do subsídio, senão mesmo, nos casos mais graves, na prisão.

Eis, então, o paradoxo supremo da modernidade liberal com a sua promessa da máxima libertação individual: ao intentar a superação das restrições primordiais morais, bem como recusando as agruras da queda do Paraíso, criaram-se, afinal, as condições para que o estado de infantilidade se perpetue ad aeternum. Daí, convenientemente imbecilizados, afogados em colo e mimo, parte-se da negação daquela “verdade” da narrativa bíblica para uma apologia da sua negação; mas, porque apenas o alienado nega a verdade, cai-se agora já na mais perfeita loucura que, em nome da libertação, mata a liberdade, em nome do individualismo supremo, apregoa o colectivismo, em nome do primado das pessoas, sugere o Estado como ente supremo e, extraordinariamente, em nome do liberalismo e da democracia, propõe agora, como fim de ciclo, o iliberalismo e o advento da tirania.

Nota editorial: Os pontos de vista expressos pelos autores dos artigos publicados nesta coluna poderão não ser subscritos na íntegra pela totalidade dos membros da Oficina da Liberdade e não reflectem necessariamente uma posição da Oficina da Liberdade sobre os temas tratados. Apesar de terem uma maneira comum de ver o Estado, que querem pequeno, e o mundo, que querem livre, os membros da Oficina da Liberdade e os seus autores convidados nem sempre concordam, porém, na melhor forma de lá chegar.