Os liberais têm uma saudável desconfiança do poder. Assumindo que o poder emerge dos indivíduos, e não de Deus ou do Estado, é essencial regular até que ponto os indivíduos estão dispostos a delegar no Estado, e que mecanismos de controlo a esse poder devem existir. Por isso, não é surpresa que para os liberais a Constituição seja particularmente valiosa. Não por acaso, os movimentos liberais históricos foram frequentemente designados constitucionalistas ou cartistas – em referência à carta constitucional.
Esta constatação não nos impede de ver que este é um momento particularmente infeliz para uma revisão constitucional. É evidente que há muitos aspectos em que a nossa Constituição deve ser melhorada. Mas na saída de uma pandemia, no meio de uma guerra na Europa e com uma grave crise económica à porta, o momento dificilmente poderia ser mais infeliz. E, neste sentido, é difícil perceber a iniciativa do Chega neste momento – a não ser a de, mais uma vez, acabar como ferramenta útil do PS. E o mais curioso é que para ter sucesso neste papel contou ainda com a cumplicidade do PSD, sem o qual a sua proposta seria chumbada.
Como é evidente não há acolhimento no Parlamento para propostas de revisão da Constituição do Chega. Não pelo autor, mas pelos retrocessos que representam. E o mais grave não é só isso – infelizmente temo-nos habituado a ver este triste espetáculo de bravata pública entre o Chega e o PS, enquanto, por mero interesse instrumental e tático do momento, se ajudam mutuamente. *
O que é realmente grave é que este processo de revisão da Constituição, na ressaca de uma pandemia e em plena crise do regime, abre a porta para que PS e PSD, a coberto do barulho do Chega, façam mudanças fundamentais que vão afectar as liberdades, direitos e garantias e enfraquecer as instituições e a separação de poderes.
Tanto PS como PSD apresentaram propostas que permitem restringir as liberdades – confinar ou internar compulsivamente – sem o devido controlo judicial ou legislativo. Propostas para que o acesso aos metadados seja possível retroactivamente, sem controlo judicial prévio e permitindo lançar as fundações de um estado policial. Entre PS e PSD abre-se a porta para a cristalização constitucional do mercado de trabalho, para a erosão do direito de propriedade, para a intromissão na gestão das empresas e para a constitucionalização de transportes públicos gratuitos – sabe-se lá com que custos e com que distribuição de esforço e benefícios.
A Constituição é um documento estruturante pelo que a sua revisão está limitada a intervalos de pelo menos cinco anos. Ao abrir este processo, quaisquer que sejam as alterações, teremos de viver com elas pelo menos nos próximos cinco anos. O princípio está certo – cinco anos é um prazo razoável. É um fator adicional de estabilidade e de responsabilidade. Infelizmente não é evidente que os actores políticos do PS e PSD estejam à altura dessa responsabilidade.
O que me leva à reflexão sobre o debate interno na Iniciativa Liberal – faço já a declaração de interesse, sou membro fundador da IL, membro do Conselho Nacional e fui subscritor do requerimento que suscitou o Conselho Nacional que debateu recentemente a revisão constitucional. Um debate rico, com apresentação de perspectivas, focos e posições distintas, que decorreu de forma elevada e responsável e sem instrumentalização pelas candidaturas para as suas campanhas. No final foi claro o consenso no que é estrutural e quais eram os pontos críticos que a todos preocupavam.
Para que a democracia funcione são essenciais instituições fortes – regras e órgãos que garantam o funcionamento –, mas também actores responsáveis que não sacrificam as questões de fundo ao oportunismo do momento.
Em última análise, a Constituição é a fundação do Estado de Direito. Façamos votos para que na revisão que se inicia os actores políticos saibam estar à altura desta responsabilidade. Dos 8 deputados da IL, sem excepção, conto com uma feroz defesa dos direitos, liberdades e garantias, da separação de poderes e do estado de Direito, mas também de uma atitude construtiva e leal no esforço de contribuir para o melhoramento da Constituição.
* Não tenho nenhuma simpatia pelo Chega nem pelas ideias que defende, mas sendo um partido regularmente constituído, e representando uma margem que não é insignificante da população, acredito que o melhor antídoto para o seu crescimento é demonstrar na discussão pública o vazio das suas alegadas soluções populistas. Ora o que o PS tem feito é exatamente o contrário – ao questionar o direito ao Chega de existir e ao abusar do seu poder na Assembleia da República, privando o Chega de um tratamento regular, a única coisa que faz é alimentar o ressentimento e a polarização dos apoiantes do Chega, bem como de uma margem crescente de portugueses que se sentem oprimidos pelo sistema. Neste momento o Chega é muito útil ao PS. Na emergência de uma crise económica, António Costa e o PS parecem achar divertido andar a brincar com o fogo. Os populismos atraem-se com muita facilidade.