É sabido que Portugal é uma democracia. Os portugueses têm o voto. Este é secreto e os portugueses podem usá-lo em eleições, livres de pressões ou represálias. Não há entraves sérios à constituição de novos partidos. Nas contagens de votos e apuramento de lugares em actos eleitorais, é raro surgirem denúncias da prática de fraudes. É certo que os portugueses sentem que nem tudo está bem na vida política e partidária, nomeadamente quanto à qualidade dos seus políticos. Alguns portugueses terão algumas preocupações relativamente à qualidade da democracia, mediante o que sentem e observam da vida política e partidária.

É no momento em que olhamos mais de perto para o que o voto decide, que começamos a notar coisas realmente preocupantes. A verdade é que, no sistema português, o voto decide muito pouco. Os portugueses não têm os mesmos direitos políticos que os cidadãos de muitos outros países europeus. Em Portugal fala-se frequentemente de “cidadãos” e “cidadania”, mas muitos portugueses responderão que só são “cidadãos” para pagar impostos, portagens, taxas e “rendas excessivas”. Quando se olha para a representação política, que devia ser o outro lado da moeda, dirão que faltam coisas importantes, mesmo que não saibam exactamente quais.

O sistema eleitoral para a Assembleia da República é tradicionalmente incluído no grupo dos “sistemas representativos”. Infelizmente esta classificação deve-se em larga medida a uma conveniência técnica e académica. Muitos portugueses provavelmente verão a realidade duma maneira bastante diferente. Eu afirmo que, para um sistema eleitoral ser representativo, é essencial que permita uma relação directa entre as preferências dos eleitores e a ida de determinado candidato para o parlamento. Tenho de ser claro: estou a falar de pessoas e não partidos. Um “representante” só o é, se for escolhido pelos representados, preferido entre várias opções. É precisamente esta a distinção que estabeleço entre “votar” e “eleger”: um partido não é “eleito”; apenas pessoas o são. O dicionário da Priberam diz a mesma coisa: a sua entrada para a palavra “eleger” define-a como “preferir um entre vários” e menciona “escolher” como sinónimo.

É um facto objectivo que os portugueses não podem escolher o candidato em que gostariam de votar para os representar no parlamento. É algo que está ao alcance dos cidadãos da maioria dos países europeus. Dito de outra maneira, os portugueses não dispõem do voto nominal, que pode assumir diversas formas muito diferentes entre si (círculos uninominais, listas abertas, voto único transferível, etc). Os cidadãos portugueses são votantes mas não são eleitores – excepto no caso do Presidente da República – um cargo não executivo e não legislativo.

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É frequente ouvirmos os deputados afirmarem que são representantes dos cidadãos. Eu afirmo que não são. Não é suficiente que alguém se diga representante para efectivamente o ser. Se nós não podemos escolher o membro da lista eleitoral que queremos para deputado, ele não foi verdadeiramente escolhido por nós e nesse caso não nos representa. Seguramente que os deputados portugueses representam alguém… mas não é quem vota.

O verdadeiro nome do nosso sistema eleitoral é sistema proporcional de listas fechadas. Neste contexto, “fechadas” significa que a ordem das listas é previamente decidida (i.e., imposta) pelo partidos (i.e., pelas suas chefias) em vez de ser determinada pelos eleitores. Neste ponto, importa introduzir uma curta clarificação. Há quem use um termo mais completo e num contexto mais técnico – “listas fechadas e bloqueadas” mas cujo significando é o mesmo que aqui é referido por “listas fechadas”.

Com listas fechadas, os cidadãos estão reduzidos a “votar” em listas eleitorais cuja ordem já foi decidida… pelos próprios políticos. Na prática, os políticos elegem-se a si próprios! Nas eleições legislativas portuguesas, algumas das decisões mais importantes tiveram lugar semanas antes de ser deitado o primeiro voto, quando os dirigentes partidários fizeram as suas listas de candidatos. Quem elabora as listas das 4 ou 5 maiores forças partidárias tem mais poder de decisão sobre o elenco parlamentar, do que todo o eleitorado junto. É por isso que em Portugal, é frequente os partidos quererem muito tempo para elaborar as listas, mesmo em estado de emergência nacional. Os primeiros lugares das listas – ditos “lugares elegíveis” – garantem um lugar no parlamento, mesmo quando o partido tem uma grande derrota nas eleições.

Na entrada da wikipedia “closed list” encontramos a lista de países que usam listas fechadas. Ver a lista de países que (ainda) usam listas fechadas é instrutivo e faz pensar. É com esses Países que nos queremos comparar em termos de democracia?

Analisemos um pouco a entrada “Closed list” da wikipedia. Comecemos pelos países incluídos na categoria “Proportional representation” (representação proporcional). É sabido que muitos países europeus usam sistemas proporcionais. No entanto, poucos são os que encontramos nesta lista. Da Europa, encontramos Espanha, Moldova, Montenegro, Roménia, Sérvia e Turquia. Reparem que a Lituânia apenas é incluída devido ao uso deste sistema durante o período 1992-1997. Lembro-me que, há alguns anos, esta entrada da wikipedia também incluía a Albânia, Bulgária e Croácia.

Numa categoria separada – “Mixed electoral systems” (sistemas eleitorais mistos) encontramos a Alemanha, Hungria, Itália e Rússia. A inclusão de alguns destes países pode ser enganadora, sobretudo pelo facto de se tratar de sistemas mistos. Por exemplo, o sistema alemão também inclui círculos uninominais (de candidatura) e um círculo nacional de compensação. Esse sistema pode ser incluído em diversas categorias. Embora inclua listas fechadas, na sua essência os seus resultados não se baseiam nelas. Por isso sugiro desde já que não considerem o sistema alemão no mesmo grupo que o português ou como causando os mesmos problemas. Além disso, o sistema alemão é frequentemente mencionado como um modelo para Portugal, desde que com algumas adaptações – com as quais eu concordo. O sistema alemão merece ser analisado com mais desenvolvimento do que é possível no presente artigo. É algo que planeio fazer futuramente.

Voltemos à categoria “Proportional representation”. Apenas a Espanha e a Itália correspondem a exemplos europeus de democracia “não duvidosa” – e mesmo esses são conhecidos por terem problemas de corrupção e/ou de um “fosso” entre cidadãos e políticos – em parte pelas mesmas razões que Portugal.
Há ainda um outro caso: o parlamento europeu. A maioria dos países membros usa listas fechadas – até o Reino Unido antes do Brexit. Novamente, sentem-se fortes problemas de ausência de representatividade, distância, falta de escrutínio e deficit democrático – mais uma vez pelas mesmas razões (não necessariamente as únicas).

Diversas propostas de um novo sistema eleitoral têm sido apresentadas para Portugal ao longo das últimas décadas. Algumas são sérias e muito promissoras. Outras foram mencionadas de forma vaga e no limite poderiam ser autênticas armadilhas que ameaçam decretar “na secretaria” o bloqueio definitivo da renovação do espectro partidário, com a perpetuação dos dois maiores partidos no parlamento e o desaparecimento da maioria dos outros. Como distinguir o trigo do joio? É importante que o maior número possível de cidadãos esteja capaz de avaliar as diversas propostas com espírito crítico.

Também Paulo Trigo Pereira realça a importância de incrementar a literacia eleitoral dos cidadãos, em particular daqueles que estão mais prejudicados pelo actual sistema eleitoral (capítulo 5 – “A Reforma do Sistema Eleitoral e o papel da Sociedade Civil” do livro Sistema Eleitoral Português – problemas e soluções, editado por Marina Costa Lobo).

A curta análise da entrada “Closed list” da wikipedia é suficiente para se perceber que o tópico dos sistemas eleitorais é complexo e repleto de termos técnicos. Infelizmente é necessário compreender o significado de alguns desses termos para se analisar sistemas eleitorais com espírito crítico e perceber o que estamos a perder por não termos um ou outro dos sistemas alternativos. Isso requer algum esforço e leva algum tempo, mas é possível explicar os diversos conceitos em jogo gradualmente, ao longo de uma sequência de artigos não excessivamente longos. O presente artigo é o primeiro dessa sequência. Stay tuned.