No dia 23 de Março de 2022 almocei em Santarém com um grupo de amigos que, como eu, assistiram de manhã ao Congresso Nacional do Milho. A mesa tinha 8 ou 9 pessoas, todas ligadas de uma forma ou de outra ao setor agrícola. Lembro-me muito bem deste almoço por uma razão simples. No final desse dia António Costa anunciou a constituição do XXIII Governo Constitucional.
Como era do conhecimento de todos que o governo ia ser anunciado, o tema da conversa ao almoço foi o óbvio. Quem iria ser o novo ministro, ou ministra, da agricultura. Houve quem apostasse em antigos ministros, em nomes sonantes ligados ao PS e com intervenção no setor, ou em especialistas independentes que estariam dispostos a dedicar-se à causa pública.
Ninguém apostou em Maria do Céu Antunes, que era a ministra da agricultura do governo demissionário, mas isto não era de estranhar. Nos meses anteriores, a ministra tinha sido muito criticada por grande parte das organizações do setor. Ninguém apostou, mas alguém disse que António Costa era bem capaz de reconduzir a ministra. O veredicto da mesa, unânime, foi que tal desfaçatez seria impensável.
E assim foi. António Costa convidou Maria do Céu Antunes, ela aceitou, e o setor, incrédulo, lá aceitou também o destino. Já que ia ter de lidar com a ministra mais quatro anos, ainda por cima num governo com maioria absoluta, mais valia recomeçar do princípio. Infelizmente o namoro durou pouco tempo. Em Abril de 2023, passado pouco mais de um ano, o Presidente da CAP deu uma entrevista com este título esclarecedor: “Ministra da Agricultura não tem competência e o Ministério está um caos”.
A apreciação sobre a atuação do governo na área da agricultura nestes dois últimos anos é mais ou menos uniforme, atendendo à opinião expressa pelas principais organizações. Foi muito fraca. A forma como nos posicionámos nas negociações em Bruxelas, a resposta a algumas crises que ocorreram neste período, ou a falta de estratégica e de investimento em áreas fulcrais como a água, são algumas das fragilidades mais evidentes. Mas o que mais impressionou foi a incapacidade do ministério se fazer ouvir no seio do governo.
Esta irrelevância política do setor, e do mundo rural por acréscimo, é difícil de aceitar, mas fácil de compreender. Se olharmos para os círculos eleitorais, e para o número de deputados que cada distrito elege, percebe-se bem. Lisboa, Porto, e Setúbal, os três distritos mais populosos, elegem 107 deputados, ou seja, quase metade dos deputados da Assembleia da República. Vila Real, Castelo Branco, Évora, Beja, Guarda, Bragança e Portalegre, os distritos menos populosos, elegem apenas 23 deputados, ou seja, cerca de 10% da Assembleia da República.
Se fizermos uma análise similar, mas considerando agora a área do território, as diferenças são ainda mais impressionantes. Évora e Beja, por exemplo, correspondem a quase 20% do território nacional, mas elegem apenas 6 deputados. Atenção que não são 6 deputados em cada um destes distritos. São 3 em Évora e 3 em Beja. Ou seja, estes dois distritos correspondem a 20% da área do território, mas elegem apenas 2,5% dos deputados.
Se usarmos agora a produção agrícola (em euros), continuamos na mesma linha. A região do Alentejo (Beja, Évora, Portalegre e Santarém), por exemplo, corresponde a cerca de 35% da produção agrícola do país, e elege 17 deputados. Lisboa, por outro lado, corresponde a 6,2% da produção agrícola do país, e elege 48 deputados. Não resisto a fazer uma comparação direta. Em Beja, Évora, Portalegre e Santarém, cada deputado corresponde a 2% do que produzimos. Em Lisboa, cada deputado vale apenas 0,13% do que produzimos. Não admira que os deputados do círculo eleitoral de Lisboa tenham outras preocupações.
Obviamente que estes argumentos não são suficientemente sólidos para redefinir círculos eleitorais, em que a agricultura e o mundo rural tenham maior relevância na definição das políticas. Não obstante, a forma como a agricultura e o mundo rural têm sido politicamente negligenciados nos últimos anos é insustentável.
Nem de propósito, os agricultores decidiram sair à rua com os seus tratores por essa Europa fora, e ninguém sabe como isto vai acabar. Eu também não sei, mas aposto que, se isto piorar em Portugal, todos os partidos políticos vão incutir nas suas propostas programáticas para as eleições a importância da agricultura e do mundo rural.
Casa roubada, trancas à porta.
Só tenho pena que os agricultores tenham de agir desta forma para se fazerem ouvir. Se queremos continuar a comer o que é produzido em Portugal, e se queremos manter as nossas paisagens dignas do orgulho que temos nelas, temos de convencer os políticos a rever as suas prioridades, dando maior relevância à agricultura. Uma boa altura para começar, e não interessa se somos de Lisboa ou de Beja, é no dia 10 de março, quando formos votar.