A União Europeia aprovou, em 2020, o “European Green Deal”, que em português designamos por Pacto Ecológico Europeu. O Green Deal (deixem-me chamar-lhe assim) é uma estratégia europeia com o objetivo primordial, ou melhor, com a ambição, de alcançar a neutralidade climática na União Europeia em 2050. Este novo desígnio tem tido, e vai continuar a ter, enormes implicações nas políticas, no financiamento, na legislação, e noutras iniciativas europeias, e a agricultura será, como é natural, um dos setores em que o Green Deal terá mais impacto.

A nível europeu, o instrumento político do Green Deal com maior impacto na agricultura é a Estratégia do Prado ao Prato. Esta estratégia tem como missão desenvolver sistemas alimentares robustos e resilientes, com uma perspetiva de sustentabilidade, beneficiando os consumidores e o ambiente. Entre outros objetivos, a Estratégia do Prado ao Prato pretende reduzir 50% da utilização de pesticidas, 20% do uso de fertilizantes, 50% das emissões de gases com efeito de estufa, e aumentar a agricultura biológica dos atuais 7% para 25% da terra agrícola na União Europeia. Tudo isto até 2030!

A nível nacional, o impacto do Green Deal traduz-se sobretudo na nova Política Agrícola Comum (PAC). A nova PAC, aprovada pelo Parlamento Europeu em novembro de 2021, terá um pacote de medidas e incentivos para apoiar a agricultura e o mundo rural até 2027, e tem, como seria de esperar, um grande enfoque nas questões ambientais e climáticas. Dos nove objetivos definidos para a futura PAC, três vão diretamente ao encontro do Green Deal: lutar contra as alterações climáticas, promover a utilização sustentável dos recursos naturais e proteger a biodiversidade.

Nos últimos dois ou três anos, todas estas estratégias foram discutidas pelo setor agrícola até à exaustão. É possível alcançar os objetivos definidos? Conseguimos reduzir o uso dos fertilizantes e pesticidas sem aumentar o preço dos alimentos? Os produtos agrícolas europeus vão deixar de ser competitivos relativamente aos importados? Obviamente, ninguém discute as boas intenções das políticas com enfoque no ambiente e na sustentabilidade, mas subsistem muitas dúvidas sobre como as colocar em prática, e que impacto terão na rentabilidade e na capacidade competitiva da agricultura europeia.

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No meio deste cenário já de si incerto, com os preços da energia a subir e as alterações climáticas a ameaçarem a sustentabilidade da produção alimentar, a Rússia decidiu invadir a Ucrânia. Juntos, estes dois países fornecem 28% do trigo comercializado a nível internacional, 29% da cevada, e 75% do óleo de girassol. O preço do trigo, por exemplo, subiu cerca de 60% desde o início do ano, e as notícias mais recentes sobre a guerra deixam antever o pior. A Rússia não consegue, devido às sanções, exportar o que produz, e mesmo que conseguisse não parece querer fazê-lo. A Ucrânia, com dificuldades logísticas em terra e o acesso ao Mar Negro condicionado pela guerra, muito menos.

Este cenário já seria catastrófico num ano em que as perspetivas globais de produção agrícola fossem positivas, mas infelizmente está longe de ser esse o caso. As alterações climáticas, e os chamados fenómenos extremos, já deixavam antever um ano de 2022 muito difícil. Na China, a chuva atrasou as sementeiras, e as colheitas deverão ficar bem aquém do normal este ano. A Índia, com um cenário de temperaturas demasiado elevadas nalgumas regiões, que irá afetar a produção, decidiu proibir a exportação de trigo. Na América e na Europa, a reduzida precipitação nos últimos meses deverá ter um impacto negativo em algumas culturas, nomeadamente na produção de cereais. Neste quadro, não é exagero dizer que estão criadas as condições para um cenário de disrupção do sistema alimentar global a curto prazo.

A médio prazo as coisas não parecem melhores. O cenário mais provável é que a guerra se arraste durante, pelo menos, alguns meses. A produção agrícola no próximo ano na Ucrânia vai ser fortemente afetada pela guerra, e na Rússia, com dificuldades crescentes a vários níveis, também será. O impacto nos sistemas alimentares será direto, mas também indireto. Além do aumento do preço dos combustíveis e da energia, que têm um impacto direto nas contas da agricultura, o preço dos principais fatores de produção, como os fertilizantes e os pesticidas, também continuará a aumentar.

A Rússia é o maior exportador de gás natural e o segundo maior exportador de petróleo, a nível global. No que diz respeito aos três fertilizantes mais utilizados na agricultura, a Rússia é o maior exportador de azoto, o segundo maior de potássio, e o terceiro maior de fósforo. Os pesticidas utilizados atualmente na agricultura são na sua maioria de origem química, e por isso baseados em hidrocarbonetos, havendo uma correlação direta com o preço do petróleo. Não é por isso difícil antever que o que aí vem é possivelmente pior do que o que temos agora.

Mas nem tudo é mau. A Comissão Europeia publicou, em maio, um documento que designou “Segurança, Estabilidade e Sustentabilidade”. O documento mostra que, a curto prazo, o abastecimento alimentar na Europa não está em risco, porque a União Europeia é largamente autossuficiente nos principais produtos agroalimentares. Mais importante, com o preço dos produtos agrícolas a aumentar, os agricultores parecem ter respondido de forma positiva, e as áreas semeadas deverão ser superiores este ano.

O documento apresenta ainda outro aspeto positivo. Ao contrário de outros países, que estão a impor restrições às exportações, a Comissão Europeia diz que é fundamental apoiar os países que mais precisam com produtos agrícolas e ajuda humanitária, ajudando assim a minorar o impacto da guerra. Alguns dos países em maior risco a nível global estão, na realidade, muito próximos da Europa. Países como Marrocos, Algéria, Tunísia, Líbia e Egito correm enormes riscos de sofrerem a curto prazo crises económicas e alimentares, o que levaria eventualmente a disrupções sociais, com graves impactos na Europa.

Com toda esta incerteza, e com as consequências da guerra a fazerem-se sentir cada vez mais no nosso dia a dia, incluindo na fatura do supermercado, é natural que as preocupações com o clima e a sustentabilidade tendam a passar para segundo (ou terceiro) plano. No setor agrícola, há já quem diga que o Green Deal tem os dias contados, e que a nova PAC, com grande parte do orçamento dedicado a questões ambientais e à sustentabilidade, está desajustada desta nova realidade.

Mas podemos pensar exatamente ao contrário. Tanto o Green Deal como a nova PAC têm na sua génese a competitividade e a resiliência da agricultura, os rendimentos dos agricultores, enquanto produtores de alimentos, e a garantia de abastecimento de produtos alimentares seguros e de qualidade. Se já tivéssemos atingido os objetivos que a Estratégia do Prado ao Prato se propõe atingir em 2030, estaríamos hoje em dia muito menos dependentes das importações de petróleo, de gás, de fertilizantes e de pesticidas.

Temos por isso um dilema. Por um lado, é urgente garantir a produção agrícola, de forma a contrapor tanto quanto possível as dificuldades que se aproximam. Desde o final da Segunda Guerra Mundial que a agricultura não tinha um papel tão determinante no equilíbrio geoestratégico internacional. Por outro, as dificuldades que atravessamos não podem servir de argumento para mudarmos o rumo das políticas europeias, anulando o papel de vanguarda que a Europa tem tido na ação climática e na promoção de uma agricultura que conjuga a produção com o desenvolvimento sustentável.

Aconteça o que acontecer, uma coisa é certa. Os agricultores vão continuar a trabalhar para que o impacto da guerra seja o menor possível. A história mostra que foi sempre assim, por isso não será diferente desta vez.