Um mês após a aprovação da Lei do Orçamento do Estado para 2023, o Governo tornou público o relatório da OCDE intitulado “Resourcing Higher Education in ­Portugal (2022)”, o qual pode ser uma peça central nas reformas do setor dos próximos quatro anos, designadamente na necessidade de reforma do sistema de financiamento do ensino superior.

Dentro deste sistema, centremos a nossa atenção na temática das propinas.

Na Lei do Orçamento do Estado para 2023, o Governo optou por manter a política dos últimos quatro anos de utilização do Orçamento para reduzir o valor das propinas sem alterar a Lei do Financiamento do Ensino Superior.

Assim, para 2023-2024, verifica-se a redução de 20% do valor das propinas, aplicada desde 2019 aos ciclos de estudos conferentes de grau académico superior e aos cursos técnicos superiores profissionais das instituições de ensino superior público. Quer isto dizer que, para estudar no ensino superior público, um estudante continuará a pagar 697€ anuais, independentemente dos rendimentos do respetivo agregado familiar.

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Esta opção, adotada pelo Governo nos últimos anos, contraria uma das principais conclusões da OCDE, a qual sugere ajustamentos na política de propinas.

E belisca, inclusivamente, as recentes declarações da Ministra da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior, quando defendeu, com razão, que “as propinas não devem baixar mais” já que as universidades “precisam de mais dinheiro” e o valor atual das propinas do ensino superior público “não é assim tanto”.

De facto, a redução de propinas em cerca de 300€/ ano por estudante (aproximadamente 1 terço do valor da propina anual do ensino superior público) obrigou a um reforço do financiamento das instituições de ensino superior públicas por via do Orçamento, tendo um impacto anual de cerca de 80M€ nas dotações orçamentais das instituições e corresponde a uma provável redução da propina média em Portugal para cerca de 25% da média dos sistema da OCDE.

Ainda assim, no exercício de leilão orçamental a que já nos habituámos todos os anos, alguns não perderam tempo em se demarcar das declarações da Ministra e considerar que essa não é a “política socialista”, assumindo o compromisso de zelar pela redução das propinas, num caminho progressivo até à por si denominada “propina zero”.

Todavia, se fizermos o exercício da “propina zero”, o custo da medida fixar-se-ia em cerca de 160M€. Quer isto dizer que o reforço orçamental por conta da redução já operada e anualmente renovada, juntamente com o custo da medida “propina zero” a introduzir este ano e com o congelamento das propinas dos mestrados não necessários para o exercício de uma profissão teria um impacto global, por defeito, de cerca de 250M€ no orçamento do estado. Onde se iria “buscar” estes 250M€? Aos passes? Às residências? As bolsas de investigação científica? Às bolsas de estudo?

Acresce que, na construção do orçamento, tem o Governo privilegiado medidas progressivas e apoios diferenciados. Veja-se o exemplo da subida do salário mínimo, dos apoios ao aumento dos preços, dos incrementos nas pensões. Logo, a opção por medidas universais (como é o caso dos manuais gratuitos ou da propina igual para todos) revela-se extremamente incoerente.

Ora, em 12 de janeiro de 2019, escrevi neste mesmo sítio, que «o estabelecimento progressivo da gratuitidade do ensino superior não pode ser afastado do imperativo de superação de desigualdades económicas, sociais e culturais através do ensino. O direito à denominada “escola superior pública gratuita” é um direito colocado sob reserva do possível – um direito, por isso mesmo, de realização gradual».

Se à data esse artigo foi rapidamente apelidado de “neoliberal”, agora é a própria OCDE que vem alertar para a necessidade de se associar o nível de propinas a critérios socioeconómicos, aumentando o apoio financeiro aos estudantes mais carenciados, de acordo com o que as finanças públicas permitirem.

Hoje, segundo a OCDE, Portugal situa-se num grupo de países europeus com propinas comparativamente baixas no ensino superior público. E a decisão de reduzir as propinas para todos os estudantes do ensino superior público, e compensar as instituições pela receita perdida em sede de Orçamento, absorveu recursos públicos significativos e beneficiou não apenas estudantes de carenciados, mas também aqueles de rendimentos médios e rendimentos mais elevados.

«The decision to cut regulated tuition fees in public HEIs for all students and compensate institutions for the lost revenue has absorbed significant public resources to pay for what is effectively an untargeted subsidy that benefits not only students from lower-income backgrounds, but also those from middle and highincome backgrounds. A more nuanced approach would involve a progressive system of tuition fees, with the lowest fees for students in receipt of a grant, mid-range fees for students that do not qualify for a grant but come close to the eligibility requirements and higher fees for other students from more affluent backgrounds.»

A OCDE sugere, então, a opção por um sistema diferenciado, semelhante ao sistema utilizado na Região Flamenga da Bélgica, com três níveis de propinas: as mais baixas para estudantes bolseiros; um nível médio para estudantes com baixos níveis de rendimento, mas que não bolseiros; e propinas mais elevadas para os demais estudantes. E tudo isto acompanhado de um incremento da ação social escolar direta.

Aqui chegados, podemos (e devemos) discutir que modelo queremos. Mas já não podemos esconder que a revisão da política de propinas é necessária e urgente.