No livro A Sombra do Vento, de Carlos Ruíz Zafón, o protagonista, Daniel, em diálogo com Beatriz, o objecto dos seus amores, diz-lhe, a propósito da sua saída de Barcelona para El Ferrol, querer ter a certeza de que ela parte e que não foge.

A lembrança desse diálogo ocorre-me, com alguma frequência, quando o tema é a emigração massiva dos nossos jovens, recordando-me a óbvia diferença entre partir e fugir.

De Portugal há muito que se parte e se foge, estando a nossa História marcada por sucessivas vagas de emigração, mais ou menos intensivas, em função da situação económica, social e política do nosso País.

Partimos à descoberta de novos continentes, metidos em naus e caravelas, guiados pelas estrelas, pelo génio dos nossos marinheiros e por uma vontade, que alguns mantêm, até hoje, de conhecer mundo e de enriquecer.

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Durante a Expansão Marítima, foram muitos os portugueses que, expostos a todo o tipo de riscos, perigos e temores, se espalharam pelo Mundo, fazendo com que, hoje, a língua de um país com pouco mais de dez milhões de habitantes seja falada por cerca de duzentos e oitenta milhões de pessoas, em cinco continentes.

A riqueza material trazida pela Expansão Marítima portuguesa foi, há muito, quase toda consumida.

Sobraram as igrejas, os mosteiros e tantas outras obras financiadas pelos proveitos oriundos do império português, que, hoje, encantam os muitos turistas que nos visitam e que, goste-se ou não, são responsáveis por quase 16% do nosso PIB.

Mas o maior legado que nos ficou foi essa capacidade única de nos adaptarmos a outros locais e a outras culturas, sendo reconhecida a capacidade de integração e o valor dos imigrantes portugueses.

Muito jeito nos tem dado essa capacidade ao longo do tempo, sempre que nos chega o desejo de partir ou a necessidade de fugir.

Em períodos bem menos épicos, durante os anos da Primeira República ou do chamado Estado Novo, muitos foram aqueles que fugiram da mais absoluta miséria em que viviam, em aldeias perdidas pelo interior do País, não se dispensando aqui um exercício de memória.

Para muitos, não havia saneamento básico, água canalizada ou luz elétrica.

Acesso a uma educação passível de romper com a desigualdade social existente? Tampouco…

Por esse país fora havia, isso sim, trabalho muito duro, crianças mal nutridas e mal vestidas, alimentadas a pão, caldo magro e vinho, que tanto nutria como amortecia os sentidos e pouca, ou nenhuma, esperança de uma vida melhor em Portugal.

Aqueles que emigraram no passado eram, demasiadas vezes, pouco mais do que crianças, que nunca tinham saído das suas aldeias, com baixíssimo nível de instrução, movidos apenas pela coragem e pelo desespero que nascem da mais absoluta falta de alternativas.

A tudo isso deram a volta (teve de ser), fizeram a sua vida, a uns correu melhor, a outros pior, mas todos chamaram a si a responsabilidade de mudar o seu destino e o dos que cá deixaram, pois convém recordar que, antes da adesão de Portugal à União Europeia, o dinheiro que entrava no nosso país vinha sobretudo das remessas dos emigrantes.

Os suspiros que às vezes se vão ouvindo, a propósito do “antigamente”, com perigosos laivos de saudosismo, são uma demonstração de total desconhecimento quanto àquela que foi a realidade de várias gerações de portugueses, sendo indispensável evitar que a sua memória e a dos seus sacrifícios se perca.

Ao contrário do que alguns parecem pensar, vive-se hoje, em Portugal, infinitamente melhor.

Mas não tão bem como poderíamos viver.

Os emigrantes portugueses de hoje são  bastante diferentes daqueles que outrora deixaram Portugal, fruto não apenas do aumento do seu nível de formação, mas também das suas motivações, bem mais diversificadas.

Atualmente, muitos são os que partem para fazer o programa Erasmus, para fazer licenciaturas e mestrados, para o tão atual “ano sabático”, para experimentar outras realidades e para trabalhar, cativados por recompensas que nem sempre se esgotam nas condições remuneratórias.

Mas, apesar do muito que se evoluiu, ainda somos um país de salários baixos, com muitos problemas por resolver, principalmente na criação de oportunidades para os nossos jovens que, juntamente com as respetivas famílias, criaram legítimas expectativas de uma carreira profissional e de uma progressão social e financeira compatíveis com o investimento que fizeram na sua educação.

Os que, agora, deixam Portugal possuem, na sua esmagadora maioria, habilitações muito superiores àquelas que os antigos emigrantes possuíam, mas, guardadas as devidas e significativas diferenças, muitos ainda o fazem, tal como fizeram os seus avós, para procurar melhores condições de vida.

Alguns partem, outros fogem e seria muito bom que regressassem, um dia, com outras experiências adquiridas, preparados para se juntarem ao esforço de tornar Portugal um país mais próspero, em que para se dar mais a alguns não se tenha de tirar a outros.

Esses portugueses, que, tal como os seus antepassados, não cruzaram os braços e foram à procura de um futuro melhor merecem todo o nosso respeito, sendo obrigação de quem nos governa criar condições para que cada vez mais se parta e se regresse e cada vez menos se fuja de um país de baixo crescimento e ambições limitadas, em que o esforço, a educação e o trabalho não chegam para garantir uma vida, se não próspera, pelo menos digna.

E por digna entenda-se uma vida em que seja possível ter filhos e educá-los, num país em que a preocupação cimeira da escola pública seja os alunos e não as condições remuneratórias dos professores, em que o sistema nacional de saúde funcione, assim como os transportes públicos, constantemente afetados por greves ou perturbações (eufemismo para as constantes avarias que resultam da falta de investimento e manutenção), dotado de serviços públicos em que não seja preciso dormir à porta dos mesmos para conseguir coisas tão simples como marcar uma consulta, um país onde seja possível o acesso à habitação, sem prejudicar os legítimos interesses de proprietários, portugueses que, como todos os outros, têm o direito de dispor do que é seu.

Os erros históricos que pagamos até hoje, a herança de anos de ditadura e, entre tantos outros fatores, as políticas marcadamente ideológicas que têm vindo a ser aplicadas em Portugal continuam a fazer do nosso um país de emigrantes um país que teima em dizer aos seus jovens, aos seus melhores, que, se querem salários dignos e serviços públicos que funcionem, devem sair de Portugal.

É, infelizmente, incontornável reconhecer perante as novas gerações, as mais bem formadas de sempre, que, se querem ver o seu esforço refletido na sua qualidade de vida, se querem prosperar e enriquecer com a excelência do seu trabalho, se querem investir e empreender, se querem dispor livremente do que vierem a amealhar, se não querem entregar grande parte do resultado do seu trabalho ao Estado, se querem viver num país com um mínimo de estabilidade fiscal e legislativa, Portugal não é para eles.

Aquilo que nos trouxe até aqui não é novidade: cada vez mais Estado, um Estado que carece de reformas essenciais, há muito adiadas, e que, lamento dizê-lo, não acontecem porque os portugueses, apesar do muito que se queixam, mostram-se, em geral, satisfeitos com as políticas adotadas em Portugal, como demonstrou o resultado das últimas eleições legislativas.

Por isso, não admira que o Orçamento de Estado, já aprovado na generalidade, tenha repetido a fórmula (eleitoralmente bem sucedida) de sempre: maior carga fiscal, umas ajudas aqui e ali, a mesma lógica assistencialista do costume e nenhuma medida que aponte para as reformas de que o nosso país tanto precisa.

Chegados à aprovação do Orçamento, tudo indicava que ainda não seria desta vez que assistiríamos a uma mudança de rumo capaz de garantir aos nossos jovens a possibilidade de ficar no seu país, sem com isso hipotecar o seu futuro, condenados a receber salários mínimos ou perigosamente próximos do mínimo e a pagar impostos que corroem o seu poder de compra, sem contrapartida que lhes corresponda.

Mas, subitamente, somos surpreendidos pela demissão do nosso Primeiro-Ministro e contra todas as expectativas, que apontavam para mais dois anos de maioria absoluta do Partido Socialista, os portugueses voltam a poder expressar a sua vontade nas urnas.

É chegado o momento de fazer diferente, de ter a ambição de mudar Portugal e dar um futuro aos nossos jovens, caso contrário estes continuarão a partir e a fugir, mantendo a nossa velha tradição da diáspora, demasiadas vezes maltratada e ignorada, mas condenada a perdurar porque, a manter-se o rumo atual, este país continuará, definitivamente, a não ser para jovens.

Esses jovens não seguirão em naus e caravelas, não viajarão nos porões dos navios, não escolherão uma TAP demasiado cara para os transportar, mas, sendo inevitável que nos deixem, valha-nos o WhatsApp e as low costs que, pelo menos, permitem aos portugueses que cá ficam matar a saudade de filhos e netos e vê-los nas férias. Haja alguma coisa que funcione…