Pensámos que havia no mundo um novo normal. Mas não. Os quase três quartos de século de tensões controladas entre as grandes potências e de relativa paz mundial estão a ceder lugar ao “antigo” normal, marcado por conflitos e guerras. Observamos um reposicionamento agressivo no tabuleiro geopolítico, impulsionado pela fragilidade de alguns atores e pelo surgimento de novos protagonistas.
Acabou-se o conforto dos estatísticos de gabinete, focados nos seus ficheiros Excel a fazer previsões. Os padrões que foram capturando nas suas séries longas tornaram-se inúteis e obsoletos. Agora, é imperativo captar instantâneos da realidade para identificar desvios em relação aos modelos tradicionais e propor medidas que minimizem os riscos.
A capacidade de intervenção e a força dos países residem não só nas suas riquezas naturais e na relevância destas para a economia global, mas também nas pessoas que os habitam: conhecimentos que detêm e capacidade de rejuvenescimento. E é neste último aspeto que está o cerne do desagregar do equilíbrio. A epidemia de Covid-19 exacerbou a situação, mas a inversão do crescimento populacional na Europa, Rússia e China em 2020 é, a meu ver, a verdadeira razão para que cada qual, com estratégias mais ou menos violentas, tente reverter o caminho de declínio acelerado.
Analisando os números, as previsões do Banco Mundial indicam um crescimento contínuo da população mundial até 2086, passando dos atuais oito mil milhões para dez mil milhões e meio. Este crescimento é desigual, com algumas regiões – como Europa, China, Rússia e Japão – em declínio, outras que manterão um crescimento moderado – Estados Unidos, Canadá e grande parte da Ásia – e outras, como a África subsariana, que experienciam uma explosão demográfica. Este fenómeno, somado à emigração por falta de oportunidades, aumenta a probabilidade de grandes tensões sociais, não só em África como noutras regiões do globo.
Antecipar os efeitos da efervescência atual no nosso país, situado na ponta sudoeste da Europa, revela-se uma missão impossível. O aquecimento global e o consequente imperativo de se adotarem fontes de energia mais sustentáveis podem vir a recentralizar Portugal no contexto geoestratégico, mas, mesmo isso, não é evidente. Num contexto global de busca de oportunidades e soluções vantajosas, preveem-se negociações complexas que exigirão engenho e arte para favorecer a posição portuguesa. Ainda assim, este é o domínio onde encontro um maior potencial para impulsionar o crescimento e superar a estagnação económica, contrastando com indicadores preocupantes noutras áreas.
Portugal não soube capitalizar plenamente a qualificação das suas gerações mais novas para sair do grupo dos sete países demarcadamente mais pobres da União Europeia (Bulgária, Eslováquia, Roménia, Hungria, Grécia, Croácia e Portugal) e parte para os próximos dez anos com mais este grande desafio. Costumo dizer que a taxa de risco de pobreza transcreve apenas a proeminência da classe média e é um indicador inútil para avaliar o nível de pobreza em Portugal. Os dados mais recentes revelam um padrão de distribuição da riqueza em Portugal com demasiado peso nos rendimentos mais baixos (e daí os 17% de população abaixo do limiar de pobreza). Importa destacar que a fatia populacional que mais contribui para esses 17% é a mais idosa, que vive com pensões modestas. Contudo, estas situações de baixas pensões estão tendencialmente a desaparecer e, daqui a dez anos a geração mais velha terá um poder de compra quase em linha com a restante população. Assim, é provável que Portugal permaneça entre os países mais pobres da União Europeia, mas com uma melhoria ilusória no indicador de pobreza: uma redução de três a quatro pontos percentuais na taxa de risco de pobreza.
Somos dos mais pobres da UE27 e também dos mais envelhecidos. Projetando o cenário atual de migrações, estima-se, até ao final da próxima década, uma redução de 300 mil pessoas na população, mas um acréscimo de 360 mil na franja etária dos mais de 70 anos. Mais precisamente, teremos mais de dois milhões e meio de pessoas na fase da vida em que a necessidade de cuidados de saúde dispara. Ora, Portugal formou cerca de trinta mil médicos nos últimos vinte anos, número que repõe o das aposentações mas que não compensa a emigração (os dados dos censos mostram que, dos 60 mil registados na Ordem dos Médicos, 15 mil não estarão a exercer no país) nem este aumento da pressão por cuidados de saúde. O panorama é análogo no que respeita aos enfermeiros (dos 82 mil registados na Ordem dos Enfermeiros, apenas 67 mil exercem a sua profissão por cá).
Mais 360 mil pessoas acima dos 70 anos e menos 200 mil pessoas abaixo dos 18. Mas ainda não será no final da próxima década que o problema da falta de professores se resolverá pelo decréscimo no número de alunos. A lei da oferta e da procura fará subir os salários, atraindo interessados na carreira docente. No entanto, são demasiados os intervenientes a articular para se garantir um mínimo de preparação para a profissão, e escasso o tempo útil.
Luísa Loura é diretora da Pordata, base de dados estatísticos da Fundação Francisco Manuel dos Santos, É membro do Clube dos 52, uma iniciativa no âmbito do décimo aniversário do Observador, na qual desafiamos 52 personalidades da sociedade portuguesa a refletir sobre o futuro de Portugal e o país que podemos ambicionar na próxima década.