A situação é dramática. A pandemia do coronavírus constitui uma crise sem precedentes que terá consequências económicas e sociais ainda mais profundas do que as geradas pela crise de 2008. De acordo com as previsões do próprio Fundo Monetário Internacional, 2020 será ainda pior do que 1929. A economia global poderá contrair 3% e até 6,1% nos países com economias mais desenvolvidas. Nos países do sul da Europa, o impacto deverá ser ainda mais pronunciado: a Itália perderia 9,1% do seu PIB, Espanha e Portugal 8%, e a Grécia cerca de 10%. No entanto, segundo numerosos economistas, a recuperação poderá ser mais rápida do que a da crise de 2008, e Portugal e Espanha poderão recuperar perto de 5% do seu PIB ao longo de 2021-2022, embora as previsões ainda sejam pouco fiáveis.

Da mesma maneira, as repercussões no emprego também serão dramáticas. Estima-se que a taxa de desemprego portuguesa suba para cerca de 14% e a espanhola para quase 21%. Maus tempos para aqueles que vivem do seu trabalho. Centenas de milhares dos trabalhadores dos nossos países sofrerão atrasos no pagamento dos seus subsídios de desemprego reduzindo assim a sua capacidade de enfrentar esta crise.

Neste contexto, não surpreende que a ideia de um Rendimento Básico Incondicional (RBI) seja cada vez mais defendida. Mesmo algumas pessoas ou instituições internacionais que sempre estiveram em desacordo com a ideia parecem estar a mudar de ponto de vista. Pensemos, por exemplo, no recente editorial do Financial Times onde se pode ler que: “[…] a redistribuição deve estar na agenda; os privilégios dos mais ricos devem ser questionados. Políticas até então consideradas excêntricas, como o RBI ou um imposto sobre a riqueza, devem começar a ser consideradas”. No entanto, existem muitas vozes críticas em relação ao RBI que defendem a relevância de continuar com a ajuda tradicional aos mais desfavorecidos, tal como os programas de Rendimento Social de Inserção dos nossos respetivos países.

Estes rendimentos condicionais são geralmente ajudas financeiras que só podem ser recebidas por alguém que demonstre uma situação de necessidade específica, como ser pobre ou viver em situação de exclusão laboral, e que responda a certas “condições”, como estar inscrito na lista de desempregados, fazer cursos de formação, participar em políticas ativas de emprego, e ainda passar por longos e estigmatizantes processos administrativos e burocráticos. Contrariamente a estes rendimentos condicionais para os menos favorecidos que existem há décadas em todos os países da União Europeia, o RBI é um benefício monetário distribuído incondicionalmente pelo Estado a todos os cidadãos ou residentes legais de um país. É, portanto, um auxílio financeiro de natureza “universal” pois é recebido por todas as pessoas, ricas ou pobres, trabalhadoras ou estudantes, jovens ou idosas e “incondicional”, no sentido de “livre de obrigações”, por não ser necessário cumprir qualquer requisito para recebê-lo.

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Em defesa da universalidade

A verdade é que a eficácia das ajudas condicionais para os menos favorecidos é muito reduzida. E, se no passado, estas ajudas sempre se revelaram incapazes de reduzir a pobreza de maneira substantiva, menos ainda poderão sê-lo na atual situação de crise. Um relatório de 2018 da Rede Europeia do Rendimento Mínimo estimou que, em Portugal e Espanha, os programas de assistência financeira condicional cobriam apenas 38% e 41%, respetivamente, das famílias menos favorecidas. Assim, os nossos dois países estão entre os quatro últimos países da União Europeia em relação ao grau de cobertura das suas políticas de rendimento mínimo dirigidas aos mais desfavorecidos. O que acontece então com todas as famílias restantes? A legitimidade destes programas direcionados aos pobres pode certamente ser defendida, mas o que não pode ser feito de maneira alguma é continuar a defendê-los sem questionar a sua evidente falta de eficácia, quando sabemos que uma percentagem substancial das pessoas mais necessitadas não beneficiam destas políticas de assistência. 

A favor da incondicionalidade

Aqueles que continuam a defender programas condicionais apelam à conhecida lógica “meritocrática”, como se a meritocracia fosse o alfa e ómega da justiça social, segundo a qual apenas as pessoas que “realmente” demonstram a sua necessidade económica podem receber auxílio, apenas aquelas que demonstram estar ativamente à procura de emprego, apenas aquelas que seguem os cursos ou programas de formação vinculados a políticas ativas de emprego, etc. Em suma: apenas os bons pobres “merecem” a ajuda do Estado.

A condicionalidade vinculada às políticas de assistência económica é, no entanto, um mecanismo ineficaz, além de estigmatizante. Vários estudos como este demostram que a eficácia da maioria das políticas condicionais está comprometida pelo que os especialistas denominam “non-take-up”, ou seja, o fenómeno segundo o qual as pessoas que, mesmo que atendam aos requisitos e tenham o direito de receber ajuda, não chegam a solicitá-la. No grupo de países europeus em 2015, esse número variou entre 20 e 60%. Por exemplo, Portugal chegou a registar uma taxa de cerca de 70% na sua política de RSI e, em Espanha, essa mesma política registava um valor próximo de 45%.

Há muitas razões para explicar este fenómeno: a falta de informação e o desconhecimento sobre a existência de benefícios, assim como o seu processo de aplicação, as dificuldades burocráticas encontradas pelos grupos mais vulneráveis, a arbitrariedade administrativa, o medo de se sentir estigmatizado, a vergonha, etc. Por essa razão, a própria Comissão Européia já alertou os Estados membros que “as políticas de rendimento mínimo estão longe de mitigar a pobreza” e que “os casos de não aplicação comprometem ainda mais a eficácia de tais políticas”.

Um RBI de emergência

Os nossos governos têm muitos recursos à disposição para reduzir a pobreza e a desigualdade e devem fazer mais para combater estes dois flagelos, especialmente num momento tão dramático como o que vivemos. Mesmo se formos contra a universalidade e a incondicionalidade do RBI e continuarmos a defender que apenas aqueles que realmente “merecem” devem receber ajuda, devemos ter em conta que quando estabelecemos um limite ou uma linha económica ao determinar quem tem direito a receber ajuda e quem não tem, podemos cometer dois tipos de erros. O primeiro é que alguém que recebe um auxílio poder dizer estar abaixo dessa linha, quando na verdade não está. Nesse caso, essas pessoas serão acusadas de serem free-riders. O segundo tipo de erro é alguém não receber ajuda, embora na verdade esteja ao nível ou abaixo da linha estabelecida. Nesse caso, tratam-se de erros administrativos ou de um design inadequado do sistema. Se o Estado concede um benefício económico a alguém que “realmente não merece”, caímos no primeiro erro; se não for concedido a alguém que “realmente precisa”, o erro é muito mais grave em termos económicos, e inaceitável do ponto de vista moral e da justiça social.

É por estas razões, e devido à situação extraordinária em que nos encontramos, que propomos um RBI de emergência, tanto em Espanha como em Portugal. Seria um mecanismo simples e ao mesmo tempo mais eficaz para lidar com a situação atual. Aqueles que realmente não precisarem de um RBI, irão de qualquer maneira devolver ex post a quantia recebida via os impostos. Desta forma, garantimos que todos aqueles que realmente precisam de ajuda não fiquem desprotegidos por causa de um mau funcionamento administrativo ou de um design deficiente do sistema de proteção social. Num momento de extrema crise económica e social como a atual, não podemos permitir-nos deixar milhões de pessoas desprotegidas e ameaçadas na sua própria existência material. É hora de fazer políticas económicas ousadas e corajosas. Um RBI de emergência pode ser um bom começo nesse sentido. 

Bru Laín é Investigador no Centro de Ética, Política e Sociedade da Universidade do Minho e Professor Assistente no Departamento de Sociologia da Universidade de Barcelona.

 Roberto Merrill é Professor Auxiliar no Departamento de Filosofia da Universidade do Minho e investigador no Centro de Ética, Política e Sociedade da mesma universidade. Publicou em 2019 o livro “Rendimento básico incondicional: uma defesa da liberdade”, Almedina, ed. 70.