Há livros que não conseguimos perceber se são como notícias do jornal, como versos, ou como romances; e confundem-nos quando os lemos.  Nem sempre esses livros são bons; mas alguns são os melhores.   Os Pescadores, escrito por Raul Brandão (e publicado em 1923), é um desses livros.   “Quando regresso do mar,” diz Brandão na dedicatória, “venho sempre estonteado.”   Queixava-se da luz. Quando acabamos de ler o livro nós também, mas da obscuridade.   O livro ofende muitas opiniões aceites sobre pessoas e peixes; e não observa quase nunca as distinções consensuais entre coisas vivas e coisas mortas, e entre quem pesca e quem é pescado. Num livro sobre pescadores, parece pouco prometedor.

No entanto Brandão é de longe o escritor português que mais sabe de peixes, mesmo dos que não encontramos nas lojas, nos aquários, e nos restaurantes.  A enciclopédia assegura-nos que o negrão é uma espécie de carapau, mas Brandão explica-nos que é parecido com a tainha: distingue-se “por uma pinta doirada na cabeça, e porque dá só um salto fora da água quando a tainha chega a sete.”  Tudo parece preciso, e tudo suscita perguntas.  O que será uma tainha chegar a sete?  Será o mesmo que ir a nove?  A origem de “ir a nove” tem a ver a velocidade máxima dos eléctricos de Lisboa.   Imaginamos um negrão perseguido por uma tainha, Calçada da Estrela abaixo.

Na praça nós damos mais valor aos peixes que se mexem; e em geral admiramos melhor as pessoas que já morreram.   Raul Brandão dedicou o livro ao avô, que tinha morrido no mar muitos anos antes, e era um pescador.  A pesca é para si um modo de vida especial: só ao ser pescado é que um peixe começa realmente a ficar vivo.  A vida dos pescadores é trazerem peixes vivos para terra; Brandão conta que ouviu numa praia, à chegada do peixe, uma varina gritar “Viva o homem e morra o peixe!”, e logo a seguir os pescadores começarem a dançar.   A cerimónia indica que as duas espécies estão ligadas, e que não se pode distinguir bem os dançarinos dos peixes.   Como Brandão nota, os pescadores comem quase só peixe.

Brandão acredita que os peixes, as pessoas, os mortos e os vivos têm todos medo uns dos outros, e também que interferem constantemente uns com os outros; acredita que são realmente a mesma coisa.   Como outros grandes livros, Os Pescadores começa com um rapto: uma criança meio-adormecida é levada de noite para o fundo de um barco, por uma “mão áspera e enorme.”   Era o próprio autor, que tinha prometido em tom plácido contar-nos a história da primeira vez que foi à pesca.  Chegados ao fim do livro, percebemos que Raul Brandão sabia desde o princípio que as suas idas à pesca só começaram porque foi pescado para dentro de um barco, talvez pelo avô.

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