Alguém muito parecido com António Nobre (1867-1900) vai para o campo. Está doente e rodeado de criadas; não há outros adultos por perto. Os vizinhos mandam-lhe presentes; sente-se maldisposto e irritadiço. Lê e ouve coisas; todos acham que está maluco, ou que é maluco. No século XIX houve muitos livros e versos sobre malucos no campo; mas o poema de Nobre “Males de Anto” é um dos melhores poemas de hipocondria e de mimo. A hipocondria, como o mimo, parecem-nos exageros cómicos. Apesar disso, como os famosos paranóicos que têm inimigos, os hipocondríacos podem adoecer; e pode haver razões para dispensar mimo aos mimados.
António Nobre iria morrer cedo. Esta informação nunca nos torna a sua poesia premonitória ou objecto acrescido de compaixão. Como muitas vezes acontece com os melhores versos, o que os faz memoráveis é antes a maneira como as emoções que exprimem são despachadas para outras freguesias. António Nobre era dado à auto-depreciação; e cultivou-a na altura quase sozinho, e metodicamente. A inclinação nota-se pouco nos primeiros duzentos versos de “Males de Anto,” que são um catálogo exaustivo de variedades de auto-indulgência. Neles Nobre insiste como tudo lhe faz pena; e, como com a maior parte dos poetas, desconfia-se que a pena maior que tem é de si próprio.
Depois de quase trezentos versos de fitas, o doente chama porém a criada principal, “meiga e devota”; e a partir dessa altura tudo é virado do avesso, e são-nos descritas as bisbilhotices de uma junta médica constituída por várias criadas (o maravilhoso verso final do poema, “E o que à Sra Júlia diz, diz às mais criadas,” constitui ainda hoje o record nacional do lançamento do dativo). Nobre confia às criadas o papel de dizerem as coisas mais exactas sobre si. A indulgência é pois substituída pela depreciação. Versos como “Que manda este peru e que pede desculpa” (uma desanalogia requintada a propósito de um vizinho), ou como “foi depois que se meteu / A fumar, a beber e lá com as po’sias. / Aquilo para mim foram as companhias” (a propósito de Nobre) poderiam ter mudado a literatura em Portugal.
Os melhores versos de todos são no entanto uma rima, atribuída à criada principal, e contada por ela: “E lê, lê, chama-me: ‘Carlota, anda ouvir!’ / Mas … nada oiço. Diz que é o Sr. Shakespeare.” Requerem cuidado e prevenção. A rima só se imagina em português: é engenhosa e jocunda; e a noção de que Shakespeare é tudo o que os poetas ouvem foi desenvolvida por grandes críticos internacionais. Mas a implicação de que os leitores são as criadas velhas dos poetas é totalmente característica, e contém a ideia principal de António Nobre acerca da poesia, que lhe servia para combinar a descrição das várias alucinações que lhe acontecia ter com pedidos de aquiescência a terceiros, sempre sem resultado.