O vocabulário usado para descrever o líquido a que os nossos antepassados chamavam café é hoje em qualquer pastelaria maior que o número de palavras usadas para descrever a neve nas línguas árcticas. A distinção entre ‘chávena escaldada’ e ‘chávena quente’ sugere refinamento civilizacional. As palavras ‘abatanado’ e ‘duplo pingado’ anunciam minúcias tauromáquicas. Mesmo para alguém com disposições metafísicas, a ideia de um café sem princípio é irresistível. E não falo da diferença entre Fungoso e Arrivederci, que é cultivada sobretudo em casa.
As pastelarias proporcionam aos seus clientes a possibilidade de escolher entre coisas indistinguíveis. O objecto escolhido tem por regra preço idêntico ao do objecto que não foi escolhido. É considerado criterioso preferir (por um processo de tentativa e erro) o quarto pastel de nata da segunda fila da camada de baixo, que a olhos leigos não se distinguirá do terceiro; e é considerado bom sinal recusar um objecto empilhado numa pirâmide de obuses panados iguais. Estas liberdades são exercidas com brio e obstinação.
O exercício tem duas consequências principais. A mais evidente é que as interacções entre os dois lados do balcão, embora normalmente cordiais, são laboriosas; do lado ocidental do balcão, terminam muitas vezes na expressão idiomática ‘Senhor Luciano’. Do lado oriental, repetem-se as palavras ouvidas com o pescoço virado para trás, mas omitindo a expressão idiomática. Quem pede indica o que pede como quem aponta a terceiros uma forma que viu numa nuvem; e exaspera-se como quando os outros lhe confundem nas nuvens uma velha com um camelo.
A segunda consequência do exercício é a de conferir a todos os intervenientes a possibilidade de acreditar que não partilham as suas inclinações com mais ninguém. Trata-se de interacções que assentam na possibilidade de a cada pessoa ser servido um prato especial. Exemplo de prato especial é um folhado. Ao ser o prato especial movimentado na direcção de quem o pediu, o agente que o movimenta adquire também um pouco da natureza do promitente comedor. Onde os pratos são especiais, de facto, todos os que lhe tocam passam a ser únicos. Como observou um naturalista francês, o folhado é o homem.
Com o advento dos pratos especiais desapareceu das pastelarias o risco de alguém que lá entre se poder resignar ao que lá lhe aconteça. As pastelarias são hoje povoadas por pessoas únicas a comer pratos especiais, e em todos os casos ocupadas a distinguir entre objectos indiscerníveis. A satisfação obtida é tão geral que se torna impossível descrever as diferenças entre essas pessoas.