“Não há regra sem exceção” e o recente comunicado da denominada Comissão Independente – para os Estudo dos Abusos Sexuais de Menores na Igreja Católica –, confirma a regra: os abusadores procuram sempre fazer-se passar por vítimas.
A psicóloga Rute Agulhas, coordenadora do Grupo Vita, levantou uma questão, a meu ver, legítima e pertinente. Que critérios se podem admitir na validação de 512 testemunhos feita pela Comissão Independente quando foram apenas ouvidas 34 vítimas presencialmente?
Rute Agulhas toca no ponto fraco do Relatório Final: “o que foi efetivamente validado? Em rigor, nada, pois estamos a falar de inquéritos anónimos preenchidos por pessoas com quem nunca se esteve” presencialmente. Avança ainda mais a psicóloga ao referir que se sabe que houve no nosso país, como noutros países, inquéritos anónimos falsos para testar o sistema.
Ana Nunes de Almeida, membro da Comissão Independente, garante ao Observador: “Fizemos uma rigorosa crítica das fontes, quer nós, sociólogos, quer os historiadores. Isto significou que cada inquérito preenchido era visto do princípio ao fim em todas as respostas, para ver se havia alguma incongruência”.
É necessário dizer-se que existe uma disciplina científica, dentro da psicologia e da psiquiatria, que faz as perícias psicológicas em casos de suspeitas de abusos sexuais em crianças e em adultos. Não há, em nenhuma parte do mundo, qualquer especialista forense que possa validar casos de abuso sexual sem uma entrevista presencial. Abram ao menos o EBSCO e vejam a quantidade de artigos científicos sobre esta matéria.
Uma vez que se coloca de parte a validação dos testemunhos a partir de inquéritos online (cerca de 470) que dispensem entrevistas presenciais, poder-se-ia levantar a hipótese da validação dos mesmos a partir do cruzamento de dados dos testemunhos escritos com os documentos dos Arquivos Históricos da Igreja.
O Professor Daniel Sampaio, numa entrevista dada à RTP, quis-nos fazer acreditar nisso mesmo aquando da entrega da lista dos cem padres pedófilos entregues aos bispos: “posso dizer que os bispos de Lisboa e Porto têm ampla informação porque existiram reuniões com a Comissão representada pelo Grupo de Investigação Histórica junto dos mesmos bispados. Portanto, há material para poderem intervir”. A teoria levantada pelo psiquiatra seria a seguinte: as vítimas preencheram o inquérito online, a Comissão Independente enviou os dados para o Grupo de Investigação Histórico que vasculhou os arquivos da Igreja e confirmaram documentalmente a veracidade dos mesmos testemunhos. Acontece que tal teoria que nos quiseram fazer acreditar é falsa.
Vejamos, então, como podemos chegar a esta conclusão inequívoca. O Expresso, a 13 de fevereiro de 2023, referiu que Pedro Strecht, em entrevista à Sic Notícias, garantiu que o número de padres abusadores ainda no ativo seria “claramente mais de uma centena”. O Relatório Final dá disso conhecimento, de que houve tentativas de cruzamento de dados dos testemunhos com os Arquivos Históricos, mas parece que esta hipótese também não se verificou.
O Cardeal D. Américo Aguiar, à data coordenador da Comissão Diocesana de Proteção de Menores de Lisboa, disse o seguinte à Rádio Observador: “O que é que nos foi entregue? Foi uma folha A4 com 24 nomes. Ponto! (…) Nessa lista de 24 nomes (oito nomes com sacerdotes falecidos; quatro nomes, foram identificados como desconhecidos. Quatro ou cinco nomes cujos casos são conhecidos; há um leigo que tem um Petit Nom). Depois temos os cinco sacerdotes sobre os quais, quer no Arquivo Histórico, quer na vida mais recente do Patriarcado, não há qualquer indicação que tenha havido, que possa haver”.
Está posta de lado a teoria de que por detrás de cada nome havia documentos históricos que validassem os testemunhos enviados por email ou através dos inquéritos online. Não há, não houve e nunca encontrarão quaisquer documentos que possam validar todos os nomes que foram entregues pela Comissão Independente à Procuradora Geral da República e aos Bispos. Portanto, se quiseram manipular a opinião pública de tais fatos conseguiram, mas recorrendo a falácias.
O comunicado da mesma Comissão Independente refere-se a dois pontos que importa refletir: os critérios científicos e de proteção e confidencialidade no tratamento dos dados. O processo que esteve na base do Relatório Final foi muito pouco científico. Excluindo a incapacidade, conforme à ciência forense, de validar os testemunhos sem qualquer entrevista presencial e sem qualquer confirmação documental, é necessário pensar na quantidade de atropelos científicos que se cometeram.
A Declaração de Helsínquia da Associação Médica Mundial refere o seguinte: “É dever dos médicos que participam em investigação médica proteger a vida, a saúde, a dignidade, a integridade, o direito à autodeterminação, a privacidade e a confidencialidade da informação pessoal dos participantes”. É doloroso pensar que os testemunhos apresentados no Relatório Final têm uma pessoa por detrás. É ainda mais doloroso pensar que, sabendo disso, a Comissão Independente tenha deixado com os relatos com informações mínimas fazendo com que qualquer pessoa que conheça a vítima a possa identificar em menos de dois minutos. Por isso, a mesma Declaração se refere no número dezanove: “Todos os grupos e indivíduos vulneráveis necessitam de proteção que lhes seja especificamente dirigida”.
A criação de uma Comissão de Ética para validação científica do estudo vem expressa na Declaração no capítulo referente aos requisitos científicos e protocolos de investigação: “O protocolo de investigação deve ser submetido, para apreciação, comentários, orientação e aprovação, à respetiva comissão de ética para a investigação antes de o estudo começar. Esta comissão tem de ser transparente no seu funcionamento, tem de ser independente do investigador, do patrocinador e de qualquer outra influência e tem de ser qualificada atempadamente. Deve ter em consideração as leis e regulamentos do país ou países onde a investigação decorra, assim como as normas e padrões internacionais aplicáveis mas sem que isso conduza a uma redução ou eliminação de qualquer das proteções previstas nesta Declaração”.
Este parágrafo é claro nos critérios apontados para se fazer um estudo científico que tenha como base as pessoas. A este grupo de investigadores, chamou-se de Comissão Independente para dizer que, apesar de receber o financiamento da Conferência Episcopal Portuguesa, ela não depende desta instituição, mas tem ampla liberdade de ação. Acontece que a mesma Comissão Independente deveria ter criado uma Comissão de Ética que fosse independente de si para validar o protocolo de investigação.
Os dados foram destruídos, isto é, todo o material compilado pela Comissão Independente desapareceu. Temos, no entanto, de questionar-nos se também foram destruídas as declarações de confidencialidade e de consentimento de publicação dos testemunhos no Relatório Final. Os que foram entrevistados presencialmente assinaram alguma vez algum papel a autorizarem a publicação dos seus testemunhos, retirando os seus nomes? As mesmas vítimas tinham consciência da exposição a que iriam ser submetidas e do perigo de identificação das mesmas? Os que enviaram os seus testemunhos através dos inquéritos online ou por email deram também esse mesmo consentimento?
As dúvidas do Grupo Vita e o comunicado da Comissão Independente seriam evitáveis se o Relatório Final fosse científico como a mesma Comissão quer fazer acreditar. Baseia-se em muitos testemunhos verdadeiros, fez uma exaustiva pesquisa documental (a meu ver ilegal), mas deixam mais dúvidas do que certezas. Até porque a Comissão Independente continua a dizer que se deve dar prioridade às vítimas sem nos desviarmos do que levou a Igreja Católica a pedir este mesmo estudo. Porém, o Relatório Final é inequívoco na sua leitura: não tiveram o mínimo de empatia com as vítimas! Onde estava este respeito pelas vítimas quando desnudaram a intimidade dos seus relatos onde só faltou dizer os nomes, porque tudo o resto está expresso para que sejam identificadas?
Quando um grupo de investigação científica se vê obrigado a emitir um comunicado a defender os critérios de validação dos dados tratados, temos de concordar, é porque algo não funcionou na ciência tratada. Não basta dizer que os testemunhos passaram por vários olhos, é preciso apontar os critérios objetivos de validação forense e científica. Sem uma comissão de ética independente que valide esses mesmo critérios, não se pode dar qualquer credibilidade. Quando a privacidade e a identidade das vítimas não é respeitada, mal estão as validações dos critérios científicos.
O respeito pelas vítimas deveria ter já começado no início dos trabalhos da Comissão Independente, porque o Relatório Final e a lista dos cem padres abusadores teve apenas por detrás uma tese que se queria provar: os padres e os bispos em Portugal, como noutros países, são sistemicamente encobridores. Porém, aqueles que aconselharam no seu Relatório Final a que a Igreja levantasse o segredo de confissão nos casos de abusos sexuais de crianças, recusaram-se sistematicamente a dar informações ao Ministério Público sobre os dados que provassem as calúnias que recaíram sobre os padres. Agora, em março de 2024, destruíram todas as provas! E eles sabem porque só agora as destruíram!