N’A vida de Galileu de Bertolt Brecht, em conversa com Andrea Sarti, o discípulo que considera infelizes os países que não geram heróis, Galileu contrapõe que “Infelizes são os países que precisam de heróis”.

De facto, sempre foram muitos aqueles que, ao longo da História, buscaram alento nos chamados “grandes homens” para ultrapassar momentos de crise extrema. Foram também muitos os intelectuais que lhes dedicaram um olhar atento (de Plutarco em Roma, a Carlisle na Inglaterra vitoriana), para tentar perceber que características pessoais justificavam as expectativas do povo que seguia tais homens.

Nos últimos anos, e em larga medida devido à expansão dos movimentos populistas em contexto europeu, o surgimento de novas formas de liderança política converteu-se em amplo objeto de estudo de áreas científicas tão diversas, como as ciências políticas, filosofia, história, sociologia ou linguística. Muitos desses estudos debruçam-se sobre a questão da natureza carismática dos líderes políticos, mas carecem de uma definição clara do que tal natureza implica no contexto das sociedades democráticas do século XXI, ao reduzi-la à enumeração de um conjunto de traços mais evidentes, como a posse de uma aptidão oratória notável, uma personalidade extravagante ou uma eventual capacidade de liderança mobilizadora.

A maior parte das definições de carisma e liderança carismática deriva das propostas de Weber sobre as formas de dominação, para quem, de uma forma abrangente, o termo “dominação” é entendido enquanto a vontade, por parte de um líder, de exercer influência sobre os seus subordinados, não através da força ou ameaça, mas pelo voluntarismo e aceitação da sua autoridade. Segundo o mesmo autor, o carisma resulta da combinação entre uma dádiva excecional e um sentido de missão divina em tempo de crise (física, económica, ética, religiosa ou política) e a forma como essas qualidades são aceites por todos aqueles que se lhe submetem voluntariamente.

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Nesse sentido, o carisma é frequentemente percecionado enquanto conceito abrangente, no qual se integram características da mais variada natureza, devido, em grande medida, à ausência de alternativas.

A exceção mais notória a este tipo de posicionamento encontra-se muito provavelmente em França, onde autores como Girardet, Dorna ou Garrigues desenvolveram a noção de líder providencial (homme providentiel), com base numa tipologia repartida em quatro modelos associados a momentos de crise extrema na história francesa: Cincinato, o sábio experiente que esquece o interesse pessoal para responder ao apelo coletivo, liderar o povo e restaurar a ordem desaparecida (como o Marechal Pétain em 1940); Alexandre, o conquistador messiânico-militar no qual o povo deposita as suas expectativas (Napoleão 1º em 1799); Sólon, o legislador experiente e hábil que visa garantir um futuro melhor para o seu povo (o General de Gaulle em 1958); Moisés, o profeta da nação que antecipa os caminhos que conduzirão a uma nova terra prometida (de Gaulle em 1940).

Segundo Monod, nas sociedades em que a seleção de líderes políticos assenta fundamentalmente no carisma individual, é necessário estabelecer uma distinção clara entre o carisma democrático e o carisma demagógico, porquanto este último só respeita as regras da democracia enquanto estas podem ser exploradas para conceder legitimidade a um líder. Assim, no entender do autor, a noção de carisma pode, em princípio, ser perfeitamente compatível com a democracia, ao passo que o conceito de liderança providencial é essencialmente demagógico e, como tal, potencialmente autocrático.

O risco para as democracias parlamentares de assemelhar o destino individual do salvador ao do coletivo da nação é reconhecido desde Marx.

No entanto, à imagem de outros países, em Portugal têm sido muitas as vozes a lamentar a falta dos grandes líderes de outrora capazes de resolver as crises que nos ameaçam (sejam elas reais ou idealizadas).

As últimas campanhas eleitorais no nosso país têm evidenciado a tentativa de surgimento de líderes providenciais e da fusão entre a sua dimensão unipessoal e o destino coletivo da nação. Em momentos-chave da nossa vida coletiva, com a crescente mediatização e personalização da vida política, as qualidades intrínsecas de uma personalidade sobrepõem-se às instituições, na esperança de levar o povo a bom porto.

A poucas semanas das eleições legislativas de 10 de março, e face à aparente abundância de candidatos ao perfil de homem (ou mulher) providencial, urge, pois, refletir se, diante do boletim de voto, nos convertemos a Andrea Sarti ou alinhamos pela bitola de Galileu.