A Irlanda prepara-se para encerrar uma década de celebrações cujo início, em abril de 2012, assinalou o centenário da apresentação do 3º projeto de lei sobre a sua autonomia (Home Rule Bill) no parlamento de Westminster. Embora vendo adiada a implementação efetiva até ao final da I Guerra Mundial, foi este documento que veio espoletar uma série de eventos que desembocaram na criação do Estado Livre (Free State) da Irlanda, em dezembro de 1922.

Na sequência da Guerra de Independência entre a Irlanda e a Grã-Bretanha (1919-1921), e em grande medida devido aos efeitos da guerrilha coordenada por Michael Collins, o todo-poderoso império viu-se forçado ao diálogo com os republicanos irlandeses. David Lloyd George, primeiro-ministro liberal britânico, também conhecido como o “mago galês”, sentou-se à mesa de negociações com a delegação irlandesa, presidida por Arthur Griffith, a qual não integrava o presidente do Sinn Féin e do parlamento ilegal de Dublin, Éamon de Valera, por opções que ainda hoje são debatidas pelos historiadores. Do processo resultou o Tratado Anglo-Irlandês, com a concessão de autonomia a vinte e seis condados da Irlanda, mas mantendo sob a alçada do Reino Unido, no norte da ilha, seis dos nove condados originais do Ulster.

Assinado em 6 de dezembro de 1921 e ratificado por uma curta maioria no Dáil, o parlamento de Dublin, em 7 de janeiro de 1922, o Tratado Anglo-Irlandês continua, até hoje, a gerar grande polémica por um conjunto de razões. Por um lado, legitima a criação da Irlanda do Norte (decidida em dezembro de 1920), deixando a minoritária comunidade católica do norte fora do novo Estado, facto esse que está na base do conflito entre as fações nacionalista e unionista da Irlanda do Norte, entre os anos de 1960 e finais dos de 1990. Por outro lado, o Tratado apenas reconhece a autonomia da Irlanda segundo o estatuto de dominion e não o de república, pelo qual muitos dos nacionalistas irlandeses lutaram, desde o fim do século XIX.

Para além disso, a ratificação do Tratado levou de imediato à divisão fratricida entre os apoiantes de Michael Collins, que, apesar das limitações do documento, vislumbravam a possibilidade de conquista de mais liberdade no futuro, e os republicanos radicais liderados por Éamon de Valera, que recusavam qualquer tipo de compromisso e apenas aceitavam o reconhecimento da República da Irlanda. Durante um ano, os dois campos enfrentaram-se numa guerra civil, deixando marcas profundas nos cem anos seguintes da vida nacional e determinando, inclusive, o modo de funcionamento das instituições políticas durante todo esse período. Os dois partidos de centro-direita que alternaram no poder em Dublin, desde 1922, o Fine Gael, favorável ao Tratado, e o Fianna Fáil, seu acérrimo opositor, nasceram direta ou indiretamente dessa divisão original.

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Em 2020, pela primeira vez, ambos os partidos alcançaram um entendimento, de modo a formar um governo de coligação para impedir a chegada do partido republicano, Sinn Féin, ao poder.

O Tratado Anglo-Irlandês de 1922 assume, no entanto, redobrada importância na história moderna da Irlanda, por estar também associado à personalidade que domina grande parte do século XX no país: Éamon de Valera.

Nascido de pai espanhol e mãe irlandesa, em Nova Iorque, o seu percurso confunde-se com a própria história da Irlanda, desde a Insurreição da Páscoa de 1916, até à sua morte em 1975, depois de mais de quatro décadas a ocupar quase ininterruptamente os cargos de primeiro-ministro (Taoiseach), entre 1932 e 1959, e de presidente da república, entre 1959 e 1973.

Éamon de Valera é frequentemente comparado com Salazar, não só porque ambos exerceram o poder nos seus respetivos países durante o mesmo período temporal, mas também porque apresentam várias semelhanças em termos de personalidade, o que os levou, inclusive, a manifestações mútuas de respeito e admiração, muito embora só se tenham encontrado uma única vez, em Portugal, em setembro de 1953. À semelhança do seu homólogo português, e ainda que por razões diferentes, de Valera tem sido também, desde a sua morte, alvo de uma tentativa de esquecimento ou apagamento coletivo, porquanto se vê associado a muitos dos males sofridos pelo país, desde a Guerra Civil de 1922-1923, cuja responsabilidade lhe é largamente imputada.

Do lado da Inglaterra, tende a ser considerado como o defensor irredutível de uma Irlanda republicana e anglófoba, que se opôs a Winston Churchill na defesa da neutralidade da Irlanda na II Guerra Mundial. No seu país, de Valera é visto como o símbolo de uma Irlanda católica, conservadora, gaélica e rural que contrasta com a imagem de modernidade do país, desde a sua entrada na União Europeia em 1973 e, sobretudo, com o progresso que conheceu durante o período do Celtic Tiger nos anos 90.

A poucos passos do encerramento de uma década de celebrações centenárias, a Irlanda depara-se com um sério desafio à sua memória coletiva: comemorar a árdua conquista do seu trajeto para a independência, evitando o reconhecimento de um dos seus principais protagonistas.