Perto do centenário da sua independência, a Irlanda, independente desde 1922 e república desde 1949, prepara-se para uma das eleições mais disputadas e imprevisíveis da sua história. De acordo com as últimas sondagens nacionais, os dois partidos que têm dividido, alternadamente, o poder nos últimos cem anos, Fine Gael e Fianna Fáil, parecem em risco de serem ultrapassados por um partido cujas origens se encontram também na luta pela independência nacional, mas cuja evolução o tem transformado num ator de peso na cena política do país.

Tanto o Fine Gael (“Família dos Irlandeses”) como o Fianna Fáil (“Soldados do Destino”), nasceram diretamente da luta pela independência no início do século XX, e fogem à divisão tradicional da maioria dos países europeus, ao ponto de muitos observadores terem dificuldades em identificar diferenças ideológicas substanciais entre estes dois partidos de centro-direita. Em 1920, após a guerra de independência, os nacionalistas irlandeses conseguiram levar a poderosa Grã-Bretanha a sentar-se à mesa das negociações, de onde saiu o acordo de autonomia para 26 dos 32 condados da Irlanda em dezembro de 1921. Enquanto o tratado era aprovado pelo parlamento, os republicanos irlandeses recusavam tal compromisso e insistiam na independência da totalidade da ilha, dando início a uma guerra civil fratricida entre ambas as fações, que estabeleceu as bases da divisão política irlandesa daí em diante. Desde então, o Fine Gael (que veio substituir o Cumann na nGaedheal, “Sociedade dos Celtas”, em 1933) e o Fianna Fáil, fundado pelo histórico dirigente republicano, Eamon de Valera, em 1926, têm monopolizado o poder num país onde esta divisão original entre apoiantes e opositores do acordo deixou há muito de constituir a prioridade política.

Ao contrário destes dois partidos, cujos nomes poderão ter pouco significado para a maioria dos leitores portugueses, o Sinn Féin (“Nós Próprios”) trará à memória de muitos imagens relacionadas com o conflito que dilacerou a Irlanda do Norte, entre o fim de 1960 e os acordos de paz da Páscoa de 1998. Fundado em 1906 para defender a autodeterminação da Irlanda e a sua separação da Grã-Bretanha, o partido esteve associado ao Exército Republicano Irlandês (IRA), durante os anos do conflito na Irlanda do Norte. Ainda hoje, o Sinn Féin apresenta a característica de estar envolvido simultaneamente no parlamento de Belfast (onde tem dividido o poder, nos últimos anos, com o seu inimigo histórico, o DUP, Partido Unionista Democrático), em Westminster, onde recusa ocupar os seus lugares, e no parlamento de Dublin, o Dáil Eireann, onde recebeu quase 14% do sufrágio e 23 TDs (deputados) nas últimas eleições legislativas de 2016.

As últimas sondagens publicadas, que evidenciam a possibilidade do Sinn Féin ganhar as eleições marcadas para este sábado, parecem apontar uma alteração radical do estatuto do partido. O Irish Times publicou esta 2ª feira uma sondagem que coloca o Sinn Féin em primeiro lugar com 25% dos votos, à frente do Fianna Fáil com 23% e do Fine Gael, do atual Taoiseach (Primeiro Ministro) Leo Varadkar, com 22. Embora tal vitória, caso se confirme nas urnas, não deva implicar uma maioria no parlamento, devido à decisão, por parte do Sinn Féin, de apresentar candidatos em apenas 42 círculos eleitorais, a possibilidade de uma vitória do partido, agora dirigido por Mary Lou McDonald, tem despertado um sentimento de pânico nos restantes adversários. O facto de a líder do Sinn Feín ter sido convidada de última hora no derradeiro debate televisivo, ao lado dos dirigentes dos dois partidos que habitualmente disputam o poder em Dublin, demonstra até que ponto esta ameaça está a ser levada a sério.

Em linha com o que se verificou em Portugal recentemente, na ausência de verdadeiros partidos populistas na Irlanda, a ascensão rápida do Sinn Féin apanhou de surpresa a maioria dos observadores, incluindo os próprios dirigentes do partido. Esta capacidade de atrair o eleitorado, nomeadamente entre os mais novos que não vêm no Sinn Féin um ressurgimento de conflitos passados, deve-se em parte a uma espécie de lifting político, através do qual, de partido empenhado em defender a causa de uma Irlanda unida, republicana e independente, o Sinn Féin passou a ser o símbolo de causas tradicionalmente associadas ao populismo de esquerda, nomeadamente em termos de alojamento, saúde e política fiscal, que têm sido os temas mais relevantes desta campanha eleitoral.

Perante a rejeição de uma possível aliança pós-eleição com o Sinn Féin, tanto por parte de Leo Varadkar, atual primeiro ministro do Fine Gael, como de Micheál Martin, líder do Fianna Fáil, a eleição do próximo sábado poderá marcar o início de uma nova era na vida política da república da Irlanda. Além dos primeiros dias da União Europeia pós-Brexit, do impeachment de Trump ou do início da campanha presidencial americana, talvez valha a pena estar atento aos acontecimentos na Irlanda nos próximos dias, porquanto, mais uma vez, as potencialidades do marketing político estarão na base de novas transformações nas democracias ocidentais.

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