Descobri recentemente que, afinal, sou um cidadão com sorte. Dois episódios, aparentemente sem qualquer relação entre si, fizeram-me perceber quão sortudo um cidadão português pode ser.
Primeiro episódio: por morte de um familiar, em 2021 herdei alguns bens, onde se inclui um motociclo (uma Vespa 150 Sprint) de 1969. Cumpri todas as minhas obrigações legais relativas à herança, dentro do prazo previsto na lei, inclusive na Conservatória de Registo Automóvel (CRA) onde, a 20/04/2021 (20 dias depois do óbito), me informaram que a transmissão de propriedade do veículo poderia ser (muito) demorada, por se tratar de uma matrícula antiga e não informatizada. “Talvez anos… O IMT anda muito atrasado! Conhece lá alguém?” “Não. Não conheço.” Não. Não vou brincar com aquele assunto das crianças luso-brasileiras. Não vou por aí. Nesse mesmo dia, a CRA solicitou a “informatização das características do veículo” ao IMT (tenho provas). Em sucessivos contactos com a CRA, fui sendo informado do óbvio: “o IMT não responde”. Milagrosamente (e acreditem, foi mesmo um milagre – que não vou relatar aqui), a 20/09/2023 (29 meses mais tarde ou, talvez de modo mais impactante, 2 anos e 5 meses depois) a “informatização das características do veículo” aconteceu! Munido dos documentos necessários, no dia 16/11/2023 dirigi-me, de novo, à CRA para finalizar o processo de transmissão de propriedade. Tudo assinado e carimbado, chegou a hora de pagar. “Quanto é?” “São 130€.” “Como? 130€? Mas em 20/04/2021 paguei, aqui, 65€ por um processo semelhante para uma carrinha!” “É a coima por ter tratado disto fora de prazo, os 60 dias após o óbito.” “Fora de prazo? Mas eu fiz o pedido dentro do prazo! O IRN e o IMT são os únicos responsáveis por este atraso!” Resposta lapidar: “Tem de pagar.” Tal e qual. Curto e grosso. Sem hesitação. Paguei e guardei o recibo. No mesmo dia, escrevi um pequeno texto fundamentando a minha interpretação de cobrança abusiva de uma coima de (pasme-se!) 100% por incumprimento de prazo e a consequente mensagem de e-mail foi devidamente dirigida à CRA exigindo a devolução da quantia cobrada abusivamente. A resposta da Sra. Conservadora (também por email) é uma delícia: “…tenho a honra de remeter a V. Exa. o Modelo SIFF para a competente restituição da importância de 65€, indevidamente cobrada por esta Conservatória, o qual deve ser devidamente preenchido e apresentado ou remetido a esta Unidade Orgânica.” Fi-lo no mesmo dia. Por email. Claro! É que o dinheiro até era meu… E continuava: “Cumpre-me informar que, se a exposição ora efetuada por V. Exa. tivesse sido transmitida ao Oficial de Registos que fez a apresentação do pedido no dia 16/11/2023, a coima não teria sido cobrada.” Retorqui: “Aproveito para a informar que, no dia 16/11/2023, transmiti a minha estranheza ao Oficial de Registos pela cobrança da coima, uma vez que o pedido fora realizado dentro do prazo legal. Como resposta obtive apenas um seco: …tem de pagar”. Terminando: “Mais se informa que a conta efetuada foi retificada logo no dia 17/11/2023.” Magnífico! É isso mesmo! Só que ninguém me avisou. Depois de mais duas mensagens de e-mail dirigidas à CRA a relembrar a restituição da importância abusivamente cobrada, no dia 07/12/2023 lá responderam: “Informo que a restituição será efetuada pela Contabilidade Centralizada, o que pode demorar à volta de 60 dias.” E foi. No dia 12/12/2023. Hurra!!! Muito antes dos 60 dias! E então os juros dos 21 dias em que lá “depositei” (involuntariamente) o meu dinheiro? Nada. Zero. Coisa nenhuma. E o que é que isto tem a ver com sorte? Na minha opinião, muito. Recebi o meu dinheirinho ao fim de 21 dias, a tempo do Natal, quando poderia “demorar à volta de 60 dias”. Ora, com muita pena minha (muita mesmo), não pude assistir online ao regresso triunfal dos meus 65€ (sem juros de mora e sem qualquer notificação ou pedido de desculpas por parte da CRA) à minha conta nesse dia (12/12/2023). Seria outra emoção, não acham? Ver o pilim a cair na conta… Esta ausência, completamente involuntária, conduz ao
Segundo episódio: no dia 9/12/2023 fui transportado até às Urgências do Hospital Distrital de Aveiro (na minha área de residência), por suspeita de apendicite aguda, onde dei entrada uns minutos antes das 08:00 horas. À entrada das Urgências estavam dois cartazes enormes, semelhantes àqueles que os supermercados usam para anunciar o “leve 3 pague 2”, avisando os utentes para as limitações em algumas valências do serviço de urgência, nomeadamente um cartaz que gritava “Urgência de Cirurgia Geral encerrada”. Depois da triagem (quase imediata), do atendimento médico (muito rápido) e da ecografia: “ganhou uma viagem a Coimbra, para ser submetido a uma apendicectomia”. Cateter. Analgésico. Antibióticos. Transporte em ambulância. Dois tripulantes de ambulância (amáveis). Alta velocidade na A1. Risco. Desconforto. Receio. Consumo de uns 15-30 litros de gasóleo aos 100 Km (alguém terá ouvido falar de descarbonização? Ou do processo de redução de emissões de carbono? E da COP28?). Desgaste enorme de pneus. Tudo “ambientalmente sustentável”. Portagens (as concessionárias precisam). Internamento no Hospital dos Covões. Entrada no bloco operatório às 16:00 horas. Cirurgia. Tive muita sorte: só passaram 8 horas. Recuperação (enfermaria moderna e funcional, equipas excelentes, profissionais de uma dedicação inexcedível). Alta após 4 dias. Nada como a nossa casa! Mais uma vez, tive sorte. Quanto custou (e não só do ponto de vista ambiental), aos contribuintes portugueses, este processo de transferência entre hospitais? Quantas transferências semelhantes ocorrem por dia, em todo o país? O que ganha o nosso país com isto? O que ganham os portugueses com esta guerra entre governantes e profissionais de saúde, esta teimosia em não lhes pagar dignamente (e a outros), em não instituir carreiras aliciantes para esses profissionais (e para outros)? Alguém ganha com este estado de coisas? Sem dúvida. Mas, de momento, não me ocorre ninguém. E não vou por aí.
Resumindo: eu tive (muita) sorte. E os outros milhões de utentes que ainda confiam no SNS? Terão também?
Até tinha deixado de jogar no Euromilhões. Acho que vou voltar a jogar!