No dia 23 de maio, os líderes das democracias ocidentais lançaram mais uma investida de críticas e ameaças de sanções à Bielorrússia, depois de uma avião da Ryanair ter sido forçado, pelas autoridades bielorrussas, a executar aterragem de emergência no aeroporto de Minsk, sob alegadas denúncias de presença de engenhos explosivos a bordo. Consta que aquilo que alguns consideram ser um ato de “terrorismo estatal” tinha como objetivo deter Roman Protasevich, um crítico do regime de A. Lukhashenko que, através das redes sociais, foi uma das figuras de proa dos movimentos de contestação de 2020, que irromperam após as eleições presidenciais que reelegeram o líder bielorrusso e que a comunidade internacional considerou ter sido um ato eleitoral fraudulento.

Lukhashenko é caracterizado como o “último ditador da Europa”, um título que não está além de contestação, consoante a definição de Europa sobre a qual se esteja a refletir. Não obstante, a opinião reinante dita que o regime bielorrusso só continua a operar da forma que tem vindo a operar devido ao respaldo conferido pela Rússia, um país com o qual mantém uma relação cooperante, embora algo tensa em determinados aspetos, designadamente no que diz respeito à autonomia e soberania do Estado bielorrusso.

Na sequência das sanções lançadas pela UE à Bielorrússia, países como o Reino Unido defenderam que essas sanções deveriam estender-se à Rússia, considerando a relação de profunda proximidade estabelecida entre os dois países e o alegado apoio dado por Moscovo na operação de desvio do voo da Ryanair e na detenção de Protasevich.

No dia 31, em Moscovo, no âmbito da conferência sobre relações UE-Rússia e ao lado do MNE Santos Silva, S. Lavrov denunciou uma vez mais a arbitrariedade dos critérios da UE para a aplicação de sanções e rejeitou as teses que apontam para o envolvimento russo no incidente. Lavrov lamentou que a UE esteja agrilhoada aos interesses americanos no continente, em detrimento da defesa dos seus próprios desígnios para a região, acrescentando que a subjugação à agenda de Washington levou «os europeus a perderem toda a independência e, até mesmo, todo o seu sentido de realidade».

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Alertando para o ressuscitar de terminologia da Guerra Fria por parte de líderes europeus, o MNE russo advogou que o que se passou no aeroporto de Minsk está a ser deturpado pela imprensa ocidental e a ser instrumentalizado pelos governos da UE e EUA para justificar novas medidas punitivas contra a Rússia e para alimentar uma estratégia de reforço da aliança entre UE e NATO para conter a Rússia.

De acordo com o Kremlin, a UE e a NATO são relíquias políticas e, no contexto do «policentrismo da emergente ordem mundial», os Estados devem ser livres para escolherem as próprias alianças. Ao mesmo tempo, S. Lavrov insta o Ocidente a abandonar esforços de desestabilização da região e a respeitar compromissos assumidos pelos membros da Comunidade de Estados Independentes e da Organização do Tratado de Segurança Coletiva.

É sempre bom ter presente que a NATO e a Rússia estão bloqueadas num ciclo vicioso de tensão permanente e não parece que esse paradigma relacional se vá alterar no futuro próximo. A postura confrontacional da Aliança Atlântica e sua abordagem sobremilitarizada para com Moscovo, por um lado, e os constantes desafios e declarações de força por parte de uma Rússia que assertivamente manifesta a sua preponderância na Europa de Leste, por outro. O mais recente exemplo desta dinâmica de retroalimentação positiva é a escalada de tensão na região Leste da Ucrânia, em abril.

Dias antes, a porta-voz do MNE russo, Maria Zakharova, em declarações à imprensa, acusava os países ocidentais de histeria e desproporcionalidade, dizendo que os «parceiros europeus» se antecipavam aos resultados das investigações em curso quando apresentavam «as suas conclusões muito rapidamente, unanimemente e, como sempre, sem qualquer sustentação».

Zakharova afirmava que o Ocidente tecia narrativas que deturpavam os factos para tentar forçar uma realidade, na qual a próxima relação entre a Rússia e a Bielorrússia seria prova incontestável do envolvimento de Moscovo na “questão Protasevich”.

A linha oficial do MNE russo expõe a russofobia como elemento central da polémica gerada em torno do sucedido em Minsk, acusando a imprensa ocidental de propagar mentiras a mando dos líderes europeus. A russofobia, enquanto força-motriz do Ocidente, é um elemento central da ideologia neo-eurasianista do regime russo, que cerca a Rússia de inimigos que a querem destruir e corromper a sua civilização e os valores que a sustentam.

No seu pronunciamento, Zakharova aconselhou os países europeus a consultarem os seus think tanks para evitarem que seja passada a imagem de desunião que pautou as reações europeias ao desvio do avião. Zakharova não o disse, mas talvez possamos inferir com alguma flexibilidade de raciocínio, que ela sugeria que a UE pudesse tirar lições do trabalho desenvolvido pelo Clube de Izborsk, o principal gerador da força ideológica do regime russo.

As declarações da chefia diplomática russa ecoam traços do neo-eurasianismo que edifica o regime de V. Putin: uma ideologia que perspetiva a Rússia como estando no centro das dinâmicas geopolíticas da Eurásia, que está cercada por países que procuram desestabilizar a Rússia e as relações com os seus aliados, e que eleva a Rússia a um lugar de defensor de um ideal civilizacional que é o único garante da continuidade das sociedades eslavas e a única defesa contra o tentativo avanço dos ideários perversos propagados pelo Ocidente.

O Estado União Rússia-Bielorrússia

Outro aspeto que não pode ser negligenciado na reflexão sobre os acontecimentos de 23 de maio prende-se com as relações entre a Bielorrússia e a Rússia e o chamado Estado União. Assinado a 8 de dezembro de 1999 e em vigor desde 26 de janeiro de 2000, o Tratado da União, no seu Artigo 1.º, «estabelece um Estado União que marcará um novo estádio do processo de unificação dos povos dos dois países num Estado democrático regido pela lei».

Esta união de povos assentaria na comunidade histórica partilhada pelos dois países, bem como na convicção de que o Estado União «permitirá um esforço unido em prol dos interesses de progresso social e económico de ambos os Estados».

Alguns observadores argumentam que, desde então, pouco tem sido feito para, com efeito, concretizar esta união, uma transformação que pode ser considerada como uma ameaça ao domínio e autonomia de Lukhashenko. Apesar de considerar os dois povos como “irmãos”, prefere perspetivar a Rússia como um aliado e não como um soberano. Em janeiro de 2020, no contexto de um diferendo sobre as relações energéticas entre Bielorrússia e a Rússia, e que gerou tensão entre os dois países, Lukhashenko afirmou que tinha orgulho de ser o primeiro presidente da Bielorrússia, mas não fazia tenção de ser o último, no que se poderá interpretar como uma tomada de posição, ainda que relativamente ligeira, quanto à disponibilidade de Lukhashenko para deixar a presidência e passar a ser um lugar-tenente num Estado União encabeçado por Putin.

Apesar de não existir, de facto, uma união entre Rússia e Bielorrússia, para o Kremlin e o presidente V. Putin, o país vizinho é parte integrante de uma mais ampla visão de uma etnia e civilização russas, que transcendem normas internacionais, parecendo considerar as suas relações com Minsk como algo do domínio dos assuntos internos, estando, assim, além do alcance do escrutínio ou interferência internacionais.

Apesar de o fulcro desta nova fonte de tensões entre Ocidente e mundo russófono parecer inserir-se na esfera do prosaísmo, o «incidente», como é designado pela Rússia, vai muito além de uma infração das normas de Direito Internacional. Mexe com sentimentos, perceções e demais intersubjetividades, alimentadas quer pelos países ocidentais, quer pela Rússia e Bielorrússia, que estão enraizados nas dimensões mais basilares das conceções identitárias de cada um dos lados da barricada, mexe com conceitos distintos de soberania, de identidade civilizacional, de mundivisões, e coloca em confronto projetos distintos para a organização de um mesmo mundo.

A postura da Rússia face a eventos como as manifestações pós-eleitorais de 2020, que contestavam a recondução de Lukhashenko ou o desvio do avião da Ryanair e a detenção de Protasevich, evidenciam que, apesar dos atritos que possam existir entre os dois Estados, a Rússia jamais deixaria cair o regime bielorrusso em consonância com críticas e pressões vindas do Ocidente e apoiadas numa mundivisão que é liminarmente rejeitada por Putin e pela sua cúpula como sendo a origem da corrosão do ideal civilizacional excecional incorporado pela Rússia. Se o regime de Lukhashenko cair, será pela mão de Putin e não pela mão do Ocidente.