No dia 18 de maio, a Duma Estatal aprovou um projeto de lei que prevê o bloqueio do acesso ao lugar de deputado na câmara baixa da Assembleia Federal a todos os que tenham sido identificados como membros ou líderes de organizações consideradas “extremistas” pela justiça russa.

Numa nota explicativa publicada na página oficial da Duma, o objetivo é estabelecer no ordenamento jurídico do país, que «um cidadão que esteja envolvido em atividades de uma organização reconhecida pela justiça como extremista ou terrorista não tem o direito de ser eleito deputado da Duma Estatal». A iniciativa legislativa partiu do Rússia Unida (RU, partido controlado por Putin com uma supermaioria de 336 lugares dos 450 da Duma, conseguida nas últimas legislativas de 2016), do Rússia Justa, dos Democratas Liberais e dos Comunistas. É bom recordar que o acesso ao poder político já é suficientemente controlado pelo Kremlin para que se pense, por um segundo que seja, que os partidos que fazem parte do Parlamento agem sob desígnios próprios e não dançam ao som dos trompetes do RU, que é o mesmo que dizer de Putin.

Para vários observadores, esta lei tem um propósito simples e evidente: impedir que o líder da oposição política popular, Alexey Navalny, consiga conquistar um lugar no órgão legislativo e, assim, estabelecer um precedente que Vladimir Putin não quer abrir: que seja passada à população a ideia de que qualquer um, incluindo opositores do regime e de Putin, pode aceder às camadas cimeiras do poder político.

A acontecer, tal liberalização do acesso à política aproximava inaceitavelmente o regime político russo dos regimes democráticos ocidentais. Putin nunca poderia permitir que tal acontecesse, uma vez que, na narrativa oficial do seu regime, todos os males que pairam sobre a Rússia têm o cunho do Ocidente e aproximar a Rússia da degradação do eixo euro-atlântico seria macular uma Rússia inocente, culpada somente de se encontrar sitiada por nações bárbaras e perversas que querem arrastar para a perdição a excecional nação-civilização russa.

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No entanto, e apesar de Navalny incomodar mais o regime do que os seus mestres deixam transparecer (seria impensável permitir brotar a ideia de que um só homem munido de um blogue alguma vez poderia fazer tremer, ainda que ligeiramente, as fundações do governo russo), não devemos achar que estas medidas são somente direcionadas a Navalny. O fortalecimento do abraço férreo do Kremlin em torno de todos os meios de poder surge numa altura em que a sociedade civil, pela primeira vez desde as revoluções do final da era czarista, se mostra disposta a sacrificar o próprio conforto, anonimato e até a vida para enfrentar uma autoridade que os oprime e subtrai do comando da própria existência.

Devemos também ter presente a estagnação da popularidade de Putin (na ordem dos 60% desde 2019; quase atingiu os 90% em 2014) e do Rússia Unida (que ronda os 33%), depois de máximos alcançados na senda da anexação da Crimeia, evento à sombra do qual o governo se deixou ficar, na esperança de que fosse suficiente para eclipsar uma economia crescentemente deficitária, uma qualidade de vida em queda e sentimentos de insatisfação inflamados por comparações com países ocidentais, possível através do recurso a redes sociais e imprensa estrangeira com penetração na Rússia.

A lei dos “extremistas” cabe na mesma categoria da lei dos “agentes estrangeiros”. Esta última, em vigor desde 2012, foi introduzida com o propósito, segundo a linha oficial, de combater organizações que beneficiem de financiamento estrangeiro e que, como tal, atuem em nome de outros Estados para perturbar a sociedade russa e radicar a instabilidade com base na disseminação de desinformação e ideias perigosas (leia-se “incómodas” para o regime, tais como democracia, liberdade, justiça, pluralidade sexual e novos conceitos de família e parentalidade, entre outras). Contudo, desde 2012 que essa lei tem vindo a designar como “agentes estrangeiros” não só organizações, como também indivíduos e órgãos de comunicação social, cujas atividades divirjam das normas estabelecidas pelo Kremlin.

Esta caça à dissidência é um elemento-chave daquilo a que o historiador Timothy Snyder chama de “política da eternidade”. Esta técnica narrativa, de construção de realidades, é um dos maiores instrumentos de que o Kremlin dispõe para isolar a Rússia e demonizar tudo e todos os que se opõem, de uma forma ou de outra, aos interesses da cúpula putinista. Deitando uma mão draconiana aos fluxos informacionais, o governo consegue mais facilmente controlar, manipular e instrumentalizar as perspetivas da população russa sobre o que jaz além-fronteiras e utilizá-las em benefício próprio.

Snyder afirma que Putin, ecoado pelo seu séquito de lealistas (não só membros da esfera política, mas também figuras proeminentes do universo empresarial), transfere para o Ocidente e para as suas ideologias perversas a origem de todos os males de que a Rússia padece, desde a falta de emprego, à fragilidade da economia e à sua posição marginal, quando existe, na discussão e condução dos assuntos globais. Ao empedernir a ideia de uma Rússia eternamente inocente predada por Estados e organizações corruptas e pecaminosas, Putin pretende declarar a Rússia como o fulcro de um novo centro de poder geopolítico, a Eurásia, e como promotor de um modelo civilizacional puro a que todos devem aspirar.

Não obstante o impulso popular contestatário parecer ter esmorecido com a auto-dissolução da Fundação Anti-Corrupção de Navalny e com os seus apelos sucessivos à expressividade moderada, com o aproximar das eleições legislativas, o Kremlin, sob a liderança de V. V. Putin, deverá continuar a apertar o cerco à dissidência, designadamente no meio digital, com restrições no acesso à internet e meios de comunicação estrangeiros, em nome da proteção da civilização russa contra construções mitológicas de traços cervantescos que o poder político russo identifica como sendo as estratégias de subversão e desestabilização encetadas pelos EUA e pela UE, a fim de enfraquecer a Rússia, corromper o seu povo e destruir os valores que sustentam a sociedade russa (ouvimos aqui as vozes de Ilyin, Dugin, Prokhanov).

As gerações mais novas, com maior facilidade de acesso ao que se passa no mundo além-fronteiras russas, deverão ser a principal força motriz do movimento de contestação do regime e o maior obstáculo ao tentativo controlo absoluto dos contactos com outras realidades, principalmente as ocidentais. Comparações com essas sociedades, designadamente via redes sociais online, continuarão a alimentar descontentamentos e ensaios de resistência e sublevação popular, num contínuo ciclo de avanços e retrocessos com as autoridades policiais e de segurança do Estado como adversários, um jogo que, até ao momento, tem sido claramente ganho pelo Kremlin.