Há um enorme e nocivo equívoco na política portuguesa — um equívoco que vai da esquerda à direita, dos reformistas aos situacionistas. É o equívoco dos “sacrifícios” e da “dor”. Ontem, a Sedes apresentou uma série de propostas de reformas que pretendem acabar com a estagnação da economia portuguesa e duplicar o nosso PIB no espaço de 20 anos — mas, mesmo tendo a coragem de propor ruturas, a Sedes caiu, involuntariamente, numa armadilha retórica ao afirmar que elas implicam “alguns sacrifícios”. Já em Abril deste ano, a todo-poderosa ministra Mariana Vieira da Silva tinha exibido a sua visão do mundo no Parlamento ao afirmar que as reformas dos “senhores” da direita são aquelas que têm o objetivo de “provocar dor”.

O enorme e nocivo equívoco é este: o que implica mais “sacrifícios” e provoca mais “dor” não são as reformas, ao contrário do que esforçadamente nos querem fazer crer — é manter tudo como está.

Hoje, quem quiser marcar uma consulta de Anestesiologia no Hospital de Évora tem de esperar 682 longos dias; quem quiser marcar uma consulta de Imunoalergologia no Hospital Santa Luzia de Elvas tem de esperar 653 intermináveis dias; quem quiser marcar uma consulta de Apoio à Fertilidade no Hospital de Faro tem de esperar 615 penosos dias. O que é que implica mais “sacrifícios” e provoca mais “dor” aos doentes: reformar o Serviço Nacional de Saúde ou deixar tudo como está?

Só até hoje, neste mês de agosto, entre greves, “constrangimentos técnicos” e “motivos de manutenção”, os passageiros da Transtejo/Soflusa, que precisam de usar o barco para atravessarem o rio Tejo e trabalharem em Lisboa, tiveram de enfrentar “perturbações de serviço” nos seguintes dias: 1, 2, 3, 4, 5, 8, 9, 10, 11, 12, 16, 17, 18 e 19. Ou seja, houve problemas em todos os dias úteis, só escapando neste deprimente calendário os dias 6 e 13, que foram sábados; os dias 7 e 14, que foram domingos; e o dia 15, que foi uma segunda-feira mas foi também, por lamentável coincidência, feriado. O que é que implica mais “sacrifícios” e provoca mais “dor” aos trabalhadores que vivem na Margem Sul: reformar as empresas públicas de transporte ou deixar tudo como está?

Este ano, no início do terceiro período escolar, havia 28 mil alunos sem professores a todas as disciplinas, sofrendo um atraso na aprendizagem e um agravamento das desigualdades. O que é que implica mais “sacrifícios” e provoca mais “dor” a estudantes e pais: reformar a maneira como organizamos as escolas ou deixar tudo como está?

Só se deixa convencer pelo argumento de que as reformas impõem mais “sacrifícios” e provocam mais “dor” quem acreditar que, neste momento, vivemos num paraíso onde correm rios de mel e se ouvem anjinhos a tocar harpa. Mas, tristemente, vivemos, em vez disso, num país pobre e estagnado e paralisado — carregado de “sacrifícios” e cheio de “dor”. Que nenhum líder político explique isto aos portugueses é, como dizia alguém, um quebra-cabeça, embrulhado num mistério, dentro de um enigma.

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