Eu compreendo: a primeira reação é sorrir. Pedro Santana Lopes anuncia que vai deixar o PSD para fundar um novo partido e todos sorrimos. Em menos tempo do que aquele que demora a dizer “Outra vez?” várias pessoas recuperaram a capa do semanário “O Independente” de 30 de Agosto de 1996 (há 22 anos, santo Deus), onde se anunciava: “Bomba: Santana Lopes sai do PSD e lança novo partido”. O objectivo na altura era, supostamente, fundar uma formação política com as iniciais de Pedro Santana Lopes (parece que há muito disso na direita portuguesa): PSL, Partido Social-Liberal.

Mas o verdadeiro partido de Santana — como o próprio gosta de afirmar e de repetir — não é o hipotético PSL nem o muito real PSD. É o PPD. Santana está sempre a contar, com obsessiva insistência, uma das grandes lendas da política portuguesa: a de que existe um fosso entre o PPD virtuoso dos fundadores e o PSD vicioso dos oportunistas, entre o PPD puro de Sá Carneiro e o PSD contaminado por interesses de todos os líderes que lhe seguiram.

A realidade histórica, como pode comprovar facilmente qualquer interessado em arqueologia partidária, não é essa. O PPD foi apenas um recurso e um expediente. O objectivo dos três fundadores — Sá Carneiro, Balsemão e Magalhães Mota — era usar desde o início o nome Partido Social-Democrata. Mas, na véspera da conferência de imprensa onde o PSD seria apresentado, um outro grupo foi a Belém falar com o Presidente Spínola e anunciar a intenção de formar o Partido Cristão Social-Democrata. Confrontados com a coincidência das duas designações, reuniram um gabinete de crise para arranjar um novo nome — e só por causa disso é que surgiu o PPD, Partido Popular Democrático. Mais e pior: quando, anos mais tarde, o PPD finalmente juntou PSD ao seu nome, isso foi feito por pressão de Sá Carneiro e a mudança acabou por ser aprovada, entre acusações de fraude, num Conselho Nacional agitado. Não há, portanto, dúvida: o Sá Carneiro que Santana tanto invoca sempre quis ser PSD.

Essa é a verdade, mas nada disso importa muito. Com os anos, o PPD transformou-se numa entidade mítica, que vive para lá da História e dos factos. E, para Santana Lopes, sempre foi um misto de promessa e de ilusão: se num dia radioso o PPD conseguisse libertar-se do PSD, o mundo transformar-se-ia no paraíso, com rios de leite e mel.

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Portanto, a resposta é sim: na decisão de deixar o PSD, Santana está, de facto, a deixar-se guiar por uma certa dose de fantasia. Mas isso não é suficiente para perceber o que se passa. Santana Lopes é impulsivo e caprichoso — certo. É inconstante e superficial — certíssimo. Mas é, também, um político com instinto.

E tudo indica que Santana percebeu que, neste momento, existe um flagrante vazio na política portuguesa: não há um partido que represente, com convicção e gosto, um eleitorado conservador nos costumes. Numa frase: falta um partido que queira ser o anti-BE. Todas as semanas, o Bloco de Esquerda inventa novas “causas fracturantes”. Umas são sérias e merecem debate, como a eutanásia; outras são puramente ideológicas, como a defesa do fim das touradas; outras ainda são absurdas, como a condenação de um anúncio contra o consumo de tabaco entre as mulheres pela simples utilização da palavra “princesa”. Mas todas, provoquem indignação ou riso nos adversários, têm um mesmo objectivo político: forçar mudanças estruturais naquilo que os bloquistas vêem como a sociedade “burguesa”. E todas essas causas são apresentadas como uma inevitabilidade progressista que arrasará os seus opositores e a que, portanto, é inútil resistir.

De facto, a resistência é pouca e é, na maior parte das vezes, ineficaz — porque, tirando as causas que mobilizam activamente a militância católica, como a eutanásia, não há uma liderança política que lhe dê organização, sustentação e propósito. À direita, o CDS tem horror a parecer um partido de sacristia e decidiu dedicar todas as suas poucas forças à promoção do liberalismo económico; e o PSD, que historicamente sempre representou um eleitorado conservador, prefere a liberdade de voto dos seus deputados à obrigação de uma disciplina que pode levar a dissidências ocasionais.

Na entrevista à Visão onde anunciou que a sua intervenção política no PSD “acabou”, Santana foi vago em relação ao que pretende fazer. Mas deixou uma pista. Citou expressamente o discurso em que apresentou a sua candidatura contra Rui Rio e disse que o seu objectivo na altura tinha sido o de “clarificar de vez o que o partido pensava e sentia”.

Realmente, esse discurso era claro. Avisava: “Não cederemos nas questões essenciais que respeitam ao ser humano, à sua formação, à sua maturação, à sua dignidade”. Anunciava: “Qualquer dia, só para o PS continuar no poder e fazer acordos à esquerda, já não será aos 16 anos, mas quem sabe talvez aos 15, aos 14, que as crianças e os jovens poderão tomar decisões fundamentais, gravíssimas, sobre as suas vidas, sobre a integridade dos seus seres, prejudicando todos os princípios e valores em que acreditamos”. E proclamava: “Nós gostamos da sociedade em que nascemos e em que vivemos, somos insatisfeitos, queremos transformá-la, melhorando-a, mas não a queremos destruir”. Mais tarde, durante a campanha no PSD, falando sobre a eutanásia, Santana invocou “a posição da religião, da Igreja” e defendeu o direito a “dar testemunho da sua fé”.

Na SIC, este domingo, Marques Mendes previu o fracasso de um eventual novo partido de Santana com o argumento de que ele está na vida política há muitos anos e não tem, por isso, “novidade”. Mas isso é ver a política de pernas para o ar. Quem disse que são necessárias “ideias novas”? Provavelmente, aquilo de que Santana precisa para ter sucesso político é do exacto contrário disso: precisa de defender empenhadamente ideias antigas e de combater entusiasticamente as “ideias novas” do BE.

Fazendo isso, o que poderia acontecer nas eleições europeias, onde o voto é mais fluido e menos fiel a tradições partidárias? Ou na Madeira, onde o social-democrata Miguel Albuquerque se prepara para ser derrotado pela esquerda, onde o eleitorado é tradicionalmente conservador e onde (detalhe importante) Alberto João Jardim também está desiludido com o PSD?

E nas legislativas? Esse novo partido de Santana teria 50% dos votos, como o PSD de Cavaco? Ou 32%, como o PS de António Costa? Talvez não — mas também não é necessário. Como o BE tem provado nos últimos anos, 10,19% são suficientes para influenciar o governo, para mudar a sociedade e para impor uma agenda política. Olhem bem para Santana Lopes e pensem: 10,19% é impossível? Ou 9%? Ou, vamos descer mais um pouco, 8,25%, como teve o PCP em 2015? A prudência recomenda: não se riam de Santana Lopes. Pelo menos, para já.