Não se deixem enganar: o que aconteceu esta terça-feira em Alcochete não é só um caso de polícia. Foi comovente ver como toda a gente, de políticos a dirigentes desportivos, falou sobre as agressões aos jogadores do Sporting com as mãos a segurar o Código Penal. Parecem tão sérios, não parecem? Mas essa é apenas uma forma cobarde de evitar tomar decisões difíceis; e é uma forma de entregar um tema incómodo às secretarias dos tribunais, onde ficarão durante anos antes que alguém entre na cadeia.

Eis o novo mantra da nossa intelligentsia futebolística: “À Justiça o que é da Justiça, ao desporto o que é do desporto”. Onde é que já ouvimos isto? Claro que a Justiça tem que fazer o que costuma fazer. Mas o desporto, e quem manda no desporto — sendo que quem manda no desporto adora aparecer nas televisões a dizer que manda no desporto –, fica apenas a assistir, de camarote, à longa liturgia de detenções, acusações, julgamentos e recursos de um ou dois (ou vinte) adeptos violentos, como se não precisasse de fazer mais nada?

Depois da invasão do centro de treinos de Alcochete por um bando de encapuzados, formou-se uma interminável fila de nulidades retóricas. O secretário de Estado do Desporto apareceu nas televisões, muito cheio de si e empertigado, a declarar que os agressores “não são adeptos do desporto”, mas “criminosos”. A Liga de futebol profissional repetiu a mesma coisa, quase palavra por palavra, num comunicado onde escrevia que “os executores destes comportamentos não são adeptos de futebol, mas sim criminosos”. A Federação Portuguesa de Futebol, toda ela impotência, limitou-se a pedir que “as autoridades públicas não olhem a recursos para levar perante a justiça os responsáveis por atos criminosos que não podem deixar de ser punidos”. Pedro Proença, presidente da Liga, afirmou, contristado, que “o futebol não é isto”. E o inamovível Bruno de Carvalho disse à Sporting TV, com a tranquilidade de quem fuma um charuto, que “isto é um caso de polícia, não é desportivo”.

“Não são adeptos do desporto”? Claro que são. “Não é um caso desportivo”? Claro que é. “O futebol não é isto”? Claro que é. O ponto, aliás, está precisamente aí: o que está em causa neste momento é aquilo em que se transformou o futebol português — numa república independente onde não há lei nem punição, onde só há deslumbramento e subserviência.

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Basta olhar para a nossa classe política: o primeiro-ministro e os ministros aparecem, inchados, nas bancadas presidenciais dos estádios; os deputados, submissos, recebem os presidentes dos clubes no parlamento; os presidentes de câmara, solícitos, entregam as sedes dos municípios às equipas que vencem campeonatos; os políticos no activo, excitados, participam em debates na televisão que competem com circos.

E basta olhar para as autoridades: os adeptos em viagem na autoestrada destroem estações de serviço sem que haja detenções; a Segunda Circular é transformada num enorme parque de estacionamento em dias de jogo sem que haja multas; as claques lançam petardos sem que haja sanção.

Durante anos e décadas, os evidentes crimes que existem no mundo do futebol foram escondidos e protegidos por políticos engravatados, por responsáveis engravatados e por comentadores engravatados. Hoje, quando tudo se tornou insustentável, estão a tremer de medo, como sempre. Incapazes de enfrentar clubes e adeptos, fazem de conta que não é nada com eles e dizem, virginais, que o melhor é chamar a polícia. Agora é que querem chamar a polícia?