Em escritos anteriores fiz uma alusão aos “signos ou sinais distintivos territoriais” — o colar de pérolas de um território — como um fator fundamental de valorização dos territórios. O universo material e simbólico de uma região contém muitos “sinais distintivos territoriais”, muitos deles ocultos, subestimados ou ignorados. Eis alguns exemplos: o mosaico agro-silvo-pastoril e paisagístico do montado, os sítios da rede natura 2000 e as áreas de paisagem protegida, a biodiversidade, os endemismos e os serviços ecossistémicos, as fontes e as minas de água, as amenidades paisagísticas e os percursos de natureza, as denominações de origem protegida (DOP) e os nichos de mercado, as apelações de património imaterial da UNESCO, o estatuto de “reserva da biosfera”, as operações de mitigação e reabilitação no quadro das alterações climáticas, os vestígios, os campos e as estações arqueológicas, os monumentos, as vistas panorâmicas, a cultura tradicional, as celebrações festivas, a literatura oral e as paisagens literárias, são exemplos de “sinais distintivos territoriais, SDT” que podem contribuir decisivamente para a construção da iconografia de uma região, a sua imagem de marca impressiva territorial.

Os signos ou sinais distintivos são, portanto, “informação bruta” acerca de um território e, ao mesmo tempo, ângulos diferentes de abordagem da história de vida desse território. O grande desafio que se segue, é, para lá da nomenclatura estatística (NUTS) ou da divisão administrativa, a descoberta e a promoção de “uma geografia desejada”, a busca de sentido e significado, que nos devolvam o território como “paisagem orgânica global”, como “território-ser vivo”, capaz de inteligência coletiva e, portanto, de uma direção e linha de rumo determinadas. Neste sentido, também, será muito interessante observar o que irá passar-se com os espaços rurais mais remotos, que nós julgávamos imunes a este movimento geral de contaminação tecnológica e digital e, doravante, imersos num caldo cosmopolita de “turistificação e culturalização” que, hoje em dia, o universo digital e as redes sociais disseminam à velocidade da luz.

Um desses sinais distintivos tem a ver com as chamadas “paisagens literárias” e o seu corolário lógico, a produção de conteúdos artísticos e culturais associados aos territórios e aos seus percursos literários. A este propósito, dois exemplos, entre outros, merecem aqui o nosso destaque: o primeiro e mais importante, o “Atlas das Paisagens Literárias de Portugal Continental”.

O projeto Atlas das Paisagens Literárias nasceu em 2010, no Instituto de Estudos de Literatura Tradicional (IELT) da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas (FCSH), concebido e coordenado pela Professora Ana Isabel Queiroz. É atualmente coordenado por Natália Constâncio (IELT-FCSH) e Daniel Alves (IHC-FCSH). Desde o primeiro momento, o Atlas assumiu-se como um projeto interdisciplinar e colaborativo com vários objetivos: ligar a literatura ao território e contribuir para valorizar o lazer e o turismo, em segundo lugar, contribuir para conhecer o património natural e cultural e as respetivas identidades locais e regionais, em terceiro lugar, contribuir para a literacia ambiental e paisagística e, em especial, para a implementação da convenção europeia da paisagem, por último, e talvez mais importante, constituir uma “comunidade de leitores e investigadores” desde os Estudos Literários à Biologia, passando pela História, a Antropologia e a Geografia, entre outros, e testar uma metodologia marcadamente digital, aberta, de partilha de conhecimento entre todos os membros dessa comunidade.

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O Atlas é, portanto, um ponto de encontro do debate literário, uma ferramenta pedagógica para o ensino e um espaço lúdico com um grande potencial de aplicação turística (ver site de apresentação do projeto aqui). O Atlas congrega e classifica excertos literários obtidos numa leitura colaborativa sobre obras publicadas entre meados do século XIX e a atualidade que tenham Portugal, as suas regiões, as suas cidades ou os seus espaços rurais como pano de fundo ou personagens principais. Na raiz da sua metodologia está a possibilidade de extrair, categorizar e mapear essas diversas e ricas representações que os escritores portugueses e estrangeiros do último século e meio têm produzido sobre o território continental e sobre o património natural, cultural e social que nele habita e interage. Ao desenvolver esta leitura sobre as paisagens literárias (consubstanciada na aplicação web) o Atlas assume-se como um projeto onde leitores e investigadores de formação diversificada na área das Humanidades colaboram com recurso a ferramentas digitais de recolha, organização, análise e visualização de dados, nomeadamente, através de bases de dados e sistemas de informação geográfica.

O projeto desenvolve muitas atividades conexas como colóquios, conferências, workshops e a coordenação de uma comunidade de leitura. Foram também publicados vários e-books e artigos em revistas científicas com avaliação por pares, nacionais e internacionais. Depois de 2018, o projeto atualizou-se do ponto de vista da sua estrutura tecnológica, abrangendo novas linhas temáticas de investigação (nomeadamente sobre poesia) e novas parcerias com membros de outros centros de investigação, mas, também, com um público mais diversificado que tem aderido à ideia de juntar o gosto pela leitura com um maior conhecimento do território.

O segundo exemplo diz respeito a uma iniciativa da Direção Regional da Cultura do Norte e à publicação pelas Edições Caixotim (2003) da coleção “Viajar com… os caminhos da literatura”, um pack de dez livros que são outros tantos roteiros ou percursos literários ligados à região norte e à topografia literária dos nossos maiores escritores dos séculos XIX e XX. Falo de Ferreira de Castro, João Araújo Correia, Miguel Torga, Teixeira de Pascoaes, José Régio, Camilo Castelo Branco, Guerra Junqueiro, Trindade Coelho, Aquilino Ribeiro e Eça de Queiroz, bem como de muitas personagens e lugares: Tormes, as Terras do Demo, o Reino Maravilhoso, são hoje mais reais do que a própria realidade.

A arte da composição territorial, o ator-rede e a curadoria territorial

Estas duas referências às paisagens literárias servem apenas para ilustrar como em redor de um signo ou sinal distintivo se pode construir uma economia de rede que, neste caso, pode reagrupar comunidades de leitores e investigadores, festivais literários, residências artísticas, roteiros literários, visitas guiadas, oficinas de escrita criativa, celebrações histórico-literárias, tudo isto no quadro de projetos convergentes e multidisciplinares como são a educação ambiental, a educação artística, a promoção e animação turística, a educação para a saúde, os programas de envelhecimento ativo e os espaços recreativos e terapêuticos para os mais jovens e os menos jovens.

Porém, o mais importante desta referência às paisagens literárias diz respeito ao potencial de reticulação e ao efeito de capilaridade que elas podem desenvolver em articulação com todos os outros sinais distintivos territoriais e, portanto, à arte da composição do território-rede que temos em nossas mãos. Estamos em plena sociedade do conhecimento, a geografia humana e económica dos sinais distintivos representa um conjunto de marcadores de tal modo impressivo que temos agora, de novo, a oportunidade de organizar “a distinção de um território” muito para lá da mera valorização produtiva e comercial desse território. Há, digamos, uma espécie de inversão da cadeia de valor do território, na exata medida em que os fatores imateriais podem adquirir um valor superlativo que acrescenta distinção às cadeias de valor tradicionais da economia da produção de bens e serviços. Ora, para alcançar esta “economia dos sinais distintivos” é preciso ir para lá da economia convencional e em busca de um ator-rede que seja uma espécie de curador territorial das novas cadeias de valor.

Nessa busca de sentido e significado, revelados através dos signos distintivos do território-desejado, o ator-rede que iremos constituir será uma espécie de curador do território, porque, para lá da economia convencional, ele tratará de conteúdos simbólicos, de promoção artística e cultural, de conhecimento técnico-científico necessário, de programação cultural e criativa, breve, ele será o protagonista principal desta inteligência coletiva territorial e o arquiteto de uma identidade em construção a partir dos seus sinais mais emblemáticos e significativos.

A título ilustrativo, neste processo cognitivo e cultural do território-rede-desejado, o ator-rede deverá ser um curador inteligente que não confunde plantações de árvores com floresta, engenharia florestal com silvicultura, culturas transgénicas com agricultura, animais clonados com pecuária, operações fundiárias com engenharia biofísica, arranjismo verde com arquitetura paisagística, esverdeamento de culturas com prestação de serviços ambientais. De resto, este elenco de situações é, só por si, um grande programa de investigação-ação-extensão a realizar pelas futuras “plataformas colaborativas” que são, já hoje, o instrumento fundamental de smartificação do território e da sua futura economia de rede e visitação.

Notas Finais

Assim sendo, como criar, então, na sociedade do conhecimento, um território inteligente e criativo, um território-rede dotado de uma inteligência coletiva territorial onde o todo é maior do que a soma das partes? Se quisermos, como criar uma estratégia de “smartificação do território-rede-desejado”?

  • Em primeiro lugar, é necessário formar uma “rede credenciada de atores locais” que seja capaz de suscitar o entusiasmo inicial para a ideia de um território-rede-desejado (T-R-D);
  • Em segundo lugar, é necessário delimitar um “território de partida” que possua um ou mais sinais distintivos a partir dos quais possa irradiar a primeira vaga de mobilização e inteligência emocional;
  • Em terceiro lugar, é necessário eleger o colar de pérolas do território de partida, os seus sinais distintivos e fazer, se for caso disso, um primeiro ajustamento nos limites do T-R;
  • Em quarto lugar, é necessário esboçar, a partir dos sinais distintivos, uma “iconografia do T-R-D” que seja a base narrativa para uma estratégia de comunicação e marketing;
  • Em quinto lugar, é necessário investir formalmente a rede inicial de atores locais em um “ator-rede-curador”, que será o pivot fundamental da realização do programa do T-R-D;
  • Em sexto lugar, é necessário elaborar o “mapa gravitacional” do T-R, isto é, o mapeamento dos atores principais envolvidos no projeto e a sua malha arterial e capilar;
  • Em sétimo lugar, é necessário conceber uma “plataforma colaborativa” para aumentar a interação e a conexão colaborativas entre todos os parceiros do projeto;
  • Em oitavo lugar, é necessário elaborar “os conteúdos programáticos e o programa de ação” para a operacionalização do T-R-D;
  • Em nono lugar, é necessário eleger os “embaixadores do T-R-D” que serão os porta-vozes da distinção territorial do T-R e da sua ligação à economia da produção de bens e serviços;
  • Em décimo lugar, é necessário criar uma coreografia própria para o T-R-D, se quisermos, uma marca coletiva para um terroir, através de uma dramaturgia apropriada de marketing digital.

Em resumo, os três momentos iniciais são fundamentais e, em especial, a seleção dos sinais distintivos territoriais (SDT) é essencial para determinar a inteligência emocional do “T-R-D” e logo, também, a natureza da comunidade virtual que se constituirá, em primeira instância, à sua volta. O nexo implicativo e a criação de sentido coletivo são, pois, fundamentais. As paisagens literárias e os seus efeitos de rede têm, julgamos, uma elevada conexão cognitiva e emocional que servirá para forjar a identificação do T-R-D e criar uma iconografia narrativa que seja representativa e na qual todos se reconheçam. Conceber o imaginário de um T-R-D é, só por si, uma tarefa de grande fôlego. Tudo pode começar no universo virtual de uma comunidade de leitores e investigadores e tudo pode ser deveras surpreendente. Por que não tentar?