Transformação digital, qualificação de recursos humanos e respeito dos limites impostos pelas alterações climáticas, e o seu corolário lógico, a recomposição das cadeias de valor, este é o quadrado mágico do próximo futuro. Tudo se passa em três planos distintos, mas, esperamos nós, convergentes. No plano microeconómico, trata-se de uma questão de modernização empresarial, literacia digital e negócio digital. No plano da mesoescala, trata-se de uma questão de reorganização do associativismo empresarial, de criação de ecossistemas de inovação, de uma smartificação do território bem conduzida e de uma recomposição ordenada das cadeias de valor respetivas. No plano macropolítico, trata-se de uma questão de modernização do estado-administração, de constituição de plataformas tecnológicas de interação com os atores setoriais, de uma gestão eficiente das políticas públicas e, em especial, de um quadro regulatório justo e eficaz no que diz respeito à repartição das mais-valias geradas pela nova composição das cadeias de valor. Vejamos, em síntese, os tópicos principais desta relação fundamental entre transformação digital (e inteligência artificial) e recomposição das cadeias de valor.

  1. A transformação digital e a inteligência artificial alteram progressivamente os processos e procedimentos industriais e mudam a posição relativa dos principais atores da cadeia de valor, substituindo gradualmente os bens industriais pelos serviços industriais e a aquisição/propriedade de produtos finais pela prestação de serviços e esta cada vez mais em regime de outsourcing;
  2. A transformação digital e a inteligência artificial podem facilitar a relocalização, o “regresso a casa”, de indústrias ou empresas que tinham sido deslocalizadas por razões de competitividade-preço e que agora já não fazem sentido ou fazem cada vez menos sentido;
  3. A transformação digital e a inteligência artificial podem dar um contributo decisivo para o cumprimento de objetivos e metas no que diz respeito às alterações climáticas, por exemplo, os programas de mitigação, a economia circular e os planos ou roteiros para a descarbonização da economia;
  4. A transformação digital e a inteligência artificial podem dar um contributo essencial para a gestão dos habitats, da biodiversidade e dos serviços ecossistémicos que são fundamentais para a manutenção das unidades de paisagem e o equilíbrio da paisagem global;
  5. A transformação digital e a inteligência artificial podem dar um contributo essencial para o ordenamento do território, a criação de regiões biogeográficas e a reterritorialização das áreas de baixa densidade por via da smartificação das redes de vilas e cidades e a criação de ambientes inteligentes e criativos como são, por exemplo, as áreas de paisagem protegida e os parques naturais em particular;
  6. A transformação digital e a inteligência artificial podem justificar a reforma estrutural do sistema de ensino-formação, por exemplo, por via da criação de “escolas digitais”, à imagem e semelhança do que aconteceu no século XX com as escolas industriais; a modernização do tecido empresarial e a reterritorialização do espaço não se compadecem com níveis elevados de iliteracia digital;
  7. A transformação digital e a inteligência artificial precisam de ser acompanhadas por uma verdadeira revolução no plano das ciências humanas e sociais, à semelhança do que aconteceu com o industrialismo do século XIX, seja no que diz respeito ao cuidado com os novos ambientes sociofamiliares e de trabalho ou no que se refere ao universo das relações funcionais e emocionais entre comunidades offline e comunidades online;
  8. A transformação digital e a inteligência artificial podem dar um contributo decisivo para a estruturação da economia azul, não apenas na organização e gestão das futuras áreas de paisagem protegidas da nossa zona económica exclusiva alargada como nas atividades da economia do mar e na monitorização dos eventos das alterações climáticas que irão ocorrer no mar oceano português;
  9. A transformação digital e a inteligência artificial podem dar um contributo essencial para a organização do chamado “quarto setor” que reúne contributos muitos diversos das economias social, cooperativa, solidária e colaborativa e que devido às alterações profundas nos mercados de trabalho assumirá uma importância fundamental na regulação da economia local e regional;
  10. A transformação digital e a inteligência artificial, ao alterarem a composição das cadeias de valor e produzirem alguns efeitos de extra-territorialidade como a evasão e a fraude fiscais, justificam, por si só, que se proceda a uma profunda revisão das bases do sistema fiscal e da segurança social na direção de um sistema  mais justo e equitativo e baseado no valor acrescentado global. 

Notas Finais

A modernização tecnológica pela via digital é uma transição com várias velocidades e muitos protagonistas. Depois da mecânica, da eletricidade, dos computadores e internet, é chegada a vez da revolução digital e inteligência artificial. A revolução em curso vai desde a investigação em novos materiais e nanotecnologias até à computação quântica e desde as múltiplas formas de inteligência artificial até à reforma das instituições que têm de lidar com esta nova e complexa realidade. Doravante, o conhecimento será um recurso abundante e barato e esta é uma enorme oportunidade para pessoas e territórios esquecidos e abandonados. A transição digital em curso não poupará ninguém, os seus efeitos serão positivos, mas, também, contraditórios e paradoxais. As macro transformações revolucionarão o paradigma da economia global e praticamente nenhuma área da nossa vida quotidiana escapará a este grande movimento de transformação digital.

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Um dos aspetos centrais desta transformação será a profunda alteração das cadeias de valor. Desde logo, maior fragmentação empresarial e uma nova geografia da cadeia de valor, em segundo lugar, maior nomadismo laboral no interior de cada cadeia de valor, em terceiro lugar, maior concentração e desigualdade geoeconómica e geopolítica, por fim, o agravamento dos problemas de extra-territorialidade e de soberania democrática.

As minhas expetativas são moderadamente otimistas e apontam na seguinte direção. Em primeiro lugar, aguardo que a União Europeia, no quadro do mercado único digital, resolva o grave problema da extra-territorialidade, isto é, que ponha cobro à evasão e fraude fiscais e seus efeitos extremamente negativos sobre as contas nacionais e a soberania de cada país membro. Em segundo lugar, faço votos para que a revolução digital em curso seja uma oportunidade para o Estado-administração rever em profundidade toda a sua política de regulação pública em matéria de inovação tecnológica e que aproveite a oportunidade para operar algumas “reformas de estado”. Em terceiro lugar, aguardo uma efetiva renovação do capital natural, uma vez que existe um grande potencial para regenerar o ambiente natural através do uso de tecnologias e sistemas inteligentes aplicados, por exemplo, à economia circular. Em quarto lugar, é possível levar a bom porto uma economia da partilha colaborativa, uma uberização benigna, a funcionar em pleno e a proporcionar-nos alguns rendimentos suplementares em mercados de aluguer, ocasião e prestação de serviços. Finalmente, espero bem que a revolução digital não desencadeie uma nova rebelião ludita, que surjam novos pretextos para os movimentos nacionalistas e populistas e que, à sua conta, paire sobre as nossas cabeças um risco difuso associado à guerra informática e ao cibercrime.

Universidade do Algarve