O concurso de Projectos Investigação e Desenvolvimento (I&D) de 2017 promovido pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT) tem vindo a revelar-se singular. Já se cumpriu um ano desde a data limite de submissão das candidaturas (17/05/2017), mas ainda há candidatos que desconhecem como foi avaliado o seu projecto. A acreditar no Aviso Para Apresentação De Candidaturas (AAC) n.º 02/SAICT/2017, este é um atraso de mais de 7 meses. Isto só será uma singularidade no grau, porque a morosidade do processo de avaliação das candidaturas é uma tradição portuguesa. Verdadeiramente singular é haver colegas que já conhecem o resultado da avaliação da sua candidatura e outros que ainda estão expectantes. Em regra, os resultados destes concursos são divulgados em simultâneo, mas há 12 semanas que esta situação insólita se prolonga. A FCT lembrou que o processo de avaliação foi complexo, o que não explica a decisão de divulgar os resultados de forma faseada e é improvável que o tivesse feito se o atraso não fosse já tão grande – no fundo, a instituição transferiu a ansiedade que vinha acumulando há meses para a comunidade científica.

Preocupante também foi a tónica colocada no aumento da dotação orçamental, dos iniciais 110 milhões para 375 milhões. Trata-se de um valor francamente positivo e inesperado, que possibilitou um aumento significativo (para 35%) da percentagem de projectos aprovados relativamente ao concurso anterior, mas esta taxa de sucesso de 35% apenas coloca a FCT em sintonia com instituições homólogas de países com uma tradição consolidada de financiamento público da ciência, como por exemplo a Deutsche Forschungsgemeinschaft (da Alemanha), que divulgou taxas anuais entre 31 e 43% para o período de 2010-2016. O cúmulo desta exibição de generosidade foi a anunciada taxa sucesso corrigida de 50%, um valor bizarro, de que nenhuma instituição homóloga da FCT em países com uma produção científica invejável se orgulharia, pois com uma aprovação de 50% os fundos não estarão a ser atribuídos com a exigência recomendável (entre 2010-2016, o UK Research Council (Reino Unido) e o National Institutes of Health (EUA) divulgaram taxas de sucesso nos intervalos 26-30% e 17-18%, respectivamente). É inútil especular sobre os motivos que terão levado a FCT a propagandear uma taxa de sucesso que, se fosse a real, seria má de tão alta. Mas ao insistir neste suposto brilharete pontual, sem apresentar uma política de financiamento a longo prazo, que acabe de vez com a irregularidade dos concursos e os atrasos nas avaliações, ganha pertinência o ditado “quando a esmola é muita, o pobre desconfia”.

A grande diferença entre os 35% reais e os 50% propagandeados resulta do elevado número de projectos que foram excluídos do cálculo da taxa de sucesso corrigida: das 4.593 candidaturas,1.293 foram classificados como “não elegíveis”, tendo ido parar a uma espécie de purgatório burocrático sem grande possibilidade de salvação final. Trata-se de 28% das candidaturas, uma percentagem elevadíssima, bastando lembrar que no concurso de 2014 apenas 10% das candidaturas tiveram o mesmo fim. Dois investigadores em cada 7 foram, em graus diferentes, vítimas de uma “derrota de secretaria”, independente do mérito científico da sua proposta. O que se terá passado entre 2014 e 2017? Vai ser preciso analisar em pormenor quais (e com que frequência) foram os critérios usados para excluir por inelegibilidade tantas candidaturas. Mas já há evidência suficiente para concluir que neste concurso foi completa a desarticulação entre os painéis internacionais de cientistas (que avaliaram a ciência) e as comissões dos programas operacionais e os técnicos da FCT (que avaliaram o resto). Não estamos perante uma improvável coincidência de falhas pontuais, mas diante de um problema sistémico.

Não pode, desde logo, deixar de se assinalar uma singularidade na avaliação das candidaturas que é preocupante e que é grave. Preocupante porque pela primeira vez a FCT, em parceria com os programas operacionais das regiões, utiliza “projecções” de indicadores de produção e realização científica para excluir candidaturas. Grave porque essas projecções são isso mesmo, apenas projecções, não merecendo passar a critério de exclusão. Sendo apresentadas pelos investigadores, são, como sempre foram, comentadas pelos painéis internacionais de cientistas e depois, a título de conclusão, são agora classificadas por técnicos e burocratas.

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Se no passado as avaliações eram feitas por outros cientistas (“pares”) e baseadas em indicadores de realização progressos, agora assistimos à situação insólita em que se decide administrativamente sobre a elegibilidade com base nos números de publicações ou teses que os investigadores estimam vir a produzir. Ou seja, a FCT decide que nalguns casos a projecção de produção de onze teses é insuficiente para se obter financiamento ao passo que, na mesma área, outros investigadores que antecipam vir a produzir três ou quatro teses têm nota máxima (casos reais). Como se não bastasse o critério ser mau, a sua aplicação é inconsistente e não é acompanhada de qualquer justificação.

Para além de insólita, esta singularidade é um paradoxo inesperado por contrariar acintosamente as linhas de orientação política para a ciência enunciadas em diversas ocasiões, nomeadamente em documentos assinados pelo ministro Manuel Heitor. Desde o “Livro Negro da Avaliação Científica em Portugal” até aos mais recentes regulamentos e documentos de avaliação produzidos pela FCT, que é clara e inequívoca a rejeição de indicadores métricos para único elemento para avaliar pessoas, ideias e instituições. É, por isso, com grande perplexidade que se constata que esses indicadores – nem sequer reais, mas apenas estimados – são agora usados para excluir um número significativo de projectos, contribuindo assim para a anunciada taxa de sucesso de 50%.

O insólito continua com uma obsessão kafkiana por números e regras e com uma indisfarçável prepotência administrativa. O concurso obriga todos os candidatos a contratarem um investigador doutorado por 30 ou mais meses. Houve quem, por lapso evidente tenha indicado 1, 15, 24 ou 29 meses (números reais), com a consequente exclusão do concurso. Sem perguntas, nem o pedido de esclarecimento previsto que foi usado para regularizar outras situações equivalentes, por também implicarem ajustamentos no orçamento ou terem resultado de desatenção do investigador, como a falta de um documento (caso real). Nem tão pouco uma audiência prévia aos interessados a que a lei obrigaria antes de se proceder à avaliação dos projectos. Esta situação em particular não é tolerável pelas razões expostas e mais uma: a acreditar no parecer enviado, a decisão estava seguramente há muitos meses na posse da FCT, visto ter sido tomada numa fase precoce da avaliação, e, ao não ser imediatamente comunicada ao investigador, deixou-o refém da morosidade do processo, com consequências objectivamente negativas, pois a expectativa quanto a uma candidatura em curso influencia as decisões sobre o tempo a investir na preparação de candidaturas
a outros concursos. Falta apurar os números finais, mas estimativas preliminares apontam para a existência de largas dezenas de exclusões liminares deste tipo.

Mas o labirinto kafkiano a que os investigadores têm de se submeter não se fica por aqui. Os resultados da avaliação “administrativa” dos projectos estão pejados de jargão reconfortantemente incompreensível e importado das regras europeias. Conceitos até agora obscuros, como alinhamentos com “desafios societais”, impacto nos resultados do “PO”, efeito de “adicionalidade”, entraram agora no léxico da ciência para ajudar a avaliar e a excluir. Uma análise mais detalhada e, porventura mais corajosa, desses conceitos conduz facilmente à conclusão que são mal traduzidos, mal definidos e mal compreendidos pelos burocratas que os avaliam. Veja-se um exemplo: a “adicionalidade” definida pela Comissão Europeia assenta no princípio de que a “contribuição financeira dos fundos estruturais não deve implicar uma diminuição das despesas estruturais nacionais nas regiões em questão”. Ora, para a FCT este efeito (que tem de ser demonstrado agregadamente por cada estado membro e se aplica ao nível dos programas e grandes orientações políticas) é avaliado, pasme-se, pelo número de teses que os investigadores estimam vir a produzir em cada um dos seus projectos. O resultado não pode ser outro senão uma enorme asneira e o aumento da discricionariedade. A consequência é o afastamento de numerosos investigadores por razões que nada têm a ver com o mérito da sua ideia científica ou com o seu curriculum.

A surpresa assume ainda paroxismos inéditos de sadismo. Os investigadores ficam a saber que tiveram uma excelente classificação de mérito científico mas que, por razões que não estão equipados para compreender, são excluídos. Muitos aprenderam, durante anos, em Portugal e no mundo, o que era necessário para ser um bom cientista: ter ideias originais, produzir ciência original que é aceite e valorizada pelos seus pares, treinar outros para atingirem níveis de formação mais diferenciado. Muitos são excelentes cientificamente mas, sem indicar qualquer razão ou explicação, a FCT delibera que os seus projetos não estão adequadamente alinhados aos desafios societais, ou não contribuem para justificar a “adicionalidade” que o país tem que reportar a Bruxelas.

Não deixa de ser irónico que, quando se anunciam as taxas de sucesso mais altas de sempre, seja também inequívoco que os 50% de projectos que vão ser financiados não são os melhores. A sorte parece ter, neste concurso, um papel geralmente inusitado na ciência. Os cientistas gerem as suas opções de carreira e as suas prioridades de investigação, com base na expectativa que o financiamento, por organismos como a FCT, seja previsível e regular. Ora nada fazia prever que o actual concurso fosse o único grande concurso em quatro anos e que não abrisse um novo concurso em 2018. De resto, o Partido Socialista defende explicitamente no seu programa de governo “o reforço e sistematização do concurso anual para apoio a projectos de I&D pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia, garantindo a periodicidade e previsibilidade das avaliações”. Não é o que está a acontecer. Bastaria alterar poucos detalhes administrativos (meses de contractos, desafios societais, número de teses esperadas) para que muito boa ciência passasse a ser elegível e financiada. Mas não é possível. Não vai haver um novo concurso este ano. A imprevisibilidade continua.

As inovações do concurso de 2017 criaram desafios, tanto aos investigadores que se candidataram como a todos aqueles envolvidos num processo de avaliação complexo. Devem os investigadores e as suas instituições remeter-se à tolerância forçada, apatia e conformismo perante as deficiências do novo interface usado para a submissão da candidatura, o enorme atraso na divulgação dos resultados e decisões de inelegibilidade puramente burocráticas? E devem ainda, no que parece ser um esforço nem ao alcance do melhor dos estóicos, aceitar que sejam informados praticamente um ano depois da data de submissão de que a candidatura não foi sequer avaliada por causa de uma desatenção facilmente corrigível em tempo útil mediante a aplicação de um procedimentos previsto, como o esclarecimento de dúvidas e a audiência prévia? Procedimentos desta natureza por parte da FCT, incompreensíveis, a raiar a prepotência e que promovem o confronto, minam uma cultura de promoção da meritocracia científica segundo critérios justos e sensatos, que devia ser comum a investigadores e a quem trabalha nas agências de financiamento.

O investigador pode recorrer individualmente e contestar o parecer da sua avaliação, mas sabemos que estes recursos são na sua esmagadora maioria inconsequentes. Esperamos sinceramente que ainda se vá a tempo de corrigir as falhas apontadas, para que não se concretize o paradoxo iminente de este ser o concurso com a melhor taxa de sucesso de sempre e também aquele que irá gerar uma maior sensação de injustiça entre a comunidade científica.

Texto assinado pelos investigadores José Delgado Alves, Cláudia Almeida, Vasco M. Barreto, Sílvia Conde, Alisson Gontijo, Rosalina Fonseca, Raffaella Gozzelino, Susana Lopes, César Mendes, Hugo Vicente Miranda, Emília Monteiro, Sofia A. Pereira, Mónica Roxo-Rosa, Rita Teodoro e Helena Vieira.