No outro dia tive a oportunidade de visitar a Escola de Fuzileiros, no Barreiro, onde o meu irmão mais novo integra uma das novas turmas de candidatos a praças fuzileiros. E apesar das instalações algo antiquadas, que sofreram poucas melhorias desde o Estado Novo, ao qual podemos juntar o armamento da mesma época (o que desde logo me fez franzir o nariz relativamente à capacidade económica e logística de Portugal para fazer regressar o Serviço Militar Obrigatório (SMO)), assim que vi uma unidade de militares, numa fase avançada do curso de Fuzileiros, a deslocar-se na sua característica marcha acelerada (tronco inclinado para a frente e pé esquerdo a elevar e a bater no chão com mais força a cada quarto tempo, para representar o movimento de desembarque), tudo aquilo que queria naquele momento era juntar-me a eles.
De um ponto de vista racional, sabia tratar-se de uma opção inviável, mas nem por isso essa análise calculada esfriou o meu entusiasmo. Se me conhecessem, poderiam considerar este interesse suspeito devido à minha ocupação académica (mestre em História Militar e doutorando na mesma área), no entanto, em conversa com o meu irmão mais velho, que me tinha acompanhado nesta visita e que actua numa área profissional completamente diferente da minha, percebi que ele partilhava o meu pensamento e entusiasmo na mesma medida. Tratar-se-ia apenas de um certo “romantismo da guerra”, axioma que nos acompanha pelo menos desde a Antiguidade Clássica: “War is sweet to the inexperienced”? Ou talvez de um patriotismo inflamado por uma visão histórica de Portugal assente nos valores aparentemente perdidos de Camões?
Provavelmente os dois tiveram o seu impacto, de uma maneira ou de outra, no entanto, parece-me que era mais profundo do que isso. Ponderei se seria o resultado da boa educação que tive (pelo menos na minha perspectiva) e que me fez reconhecer ali a proteção de muitas das virtudes que tinha tomado para mim como teoricamente ideais, ainda que nem sempre na prática. No entanto, olhando à minha volta, observei que estava na presença dos mais diversos backgrounds, com educações necessariamente díspares, e tomei a minha conclusão por presunçosa. Compreendi, então, que este apelo ao serviço militar, o que não significa necessariamente (até não o sendo para a maioria) a participação em combate, é transversal à sociedade, porque responde à dimensão imaterial do ser humano.
A disciplina e a estrutura, impostas de forma dura, sim, mas nem por isso menos transformadoras; a uniformização e o sacrifício como meios para a criação de espírito de corpo (a primeira muitas vezes criticada como uma forma de desumanização e despersonalização, o que sempre me pareceu uma apreciação demasiado materialista e ilustrativa de uma profunda ignorância; afinal estão a ser treinados para combate, a repetição e sistematização das formas e procedimentos tem um objectivo acima dos outros, como coloca John Keegan: “(…) to avert the onset of fear or, worse, of panic and to perceive a face of battle which, if not familiar, and certainly not friendly, need not, in the event, prove wholly petrifying.”); o teste e o desafio como forma de aperfeiçoamento pessoal; a realização de que o sofrimento pode ter sentido, se ao menos existir aceitação e perseverança; a pertença a algo que transcende o indivíduo e a percepção de um caminho ou propósito; a responsabilidade, pelo próprio e por outros. O serviço militar oferece tudo isto de uma forma tão simples e crua, que me arrisco a dizer que a maioria da população (pelo menos a do sexo masculino) já sentiu ou ainda sente este chamamento, mesmo que nunca se tenha dado ao trabalho de o colocar por palavras.
O sentimento existe e está latente na maior parte de nós, ainda que dormente em muitos, resultado do contexto de distração frívola em que vivemos. No entanto, esse sentimento não é captado, ou não se estaria a falar de SMO mais uma vez. A opinião mais comum, a qual eu subscrevo, passa pela melhoria das condições das Forças Armadas, mas isso não basta. Afinal, aqueles que escolhem a via militar por razões puramente materiais, são os primeiros a desistir (e mesmo se não o fizerem, estão sempre entre os piores operacionais). A melhoria das condições tem de ser forçosamente acompanhada de uma melhoria da percepção do serviço militar. Por razões histórico-culturais que serão mais ou menos óbvias para todos, a guerra nunca teve pior reputação no Ocidente; as Forças Armadas, por atuarem nessa dimensão, foram o dano colateral. Como convencer um jovem que foi, de forma acéfala e imponderada, treinado a reagir a qualquer contexto bélico com dogmática condenação, a alistar-se? Como fazê-lo, se esse mesmo jovem foi aculturado a odiar o passado do seu país e a ter pouco mais do que apatia em relação ao presente? Como, se a academia nos convenceu, advertida ou inadvertidamente, que essa vida está reservada aos bárbaros? A via militar carece do prestígio que outrora ostentou e do reconhecimento do seu legítimo valor. Até lá, todas as soluções, parece-me, serão incompletas.