Números do dia 16/3 em Portugal, divulgados a 17/3: 448 infectados, a meio do intervalo que estimei. Números muito tristes mas que são a realidade inescapável que teremos de enfrentar nas próximas duas semanas, com dezenas de milhares de infectados. O tempo da negação já lá vai.
No entanto, eis que hoje mesmo surge um raio de luz por entre esta escuridão que nos oprime. Uma luz ainda por confirmar, mas uma luz de esperança. E de orientação. Que surge em Portugal na hora H, no dia D.
Mas primeiro uma explicação.
A evolução da fase europeia desta epidemia está na sua fase exponencial. Como expliquei com detalhe no meu artigo do Observador, isto significa que a curva epidemiológica, que cresce inicialmente muito depressa –exponencialmente – passa por um ponto em que começa a abrandar o seu crescimento. Esse ponto, conhecido por ponto de inflexão, é decisivo: é ele que nos permite vislumbrar o pico do surto – ainda ao longe, mas já na linha do horizonte. A curva deixa então de ser uma exponencial para ser uma sigmóide, uma curva em S.
É um facto clássico em epidemiologia (vem nos livros de texto, geralmente no primeiro capítulo) que uma doença com imunidade zero e propagação for suficientemente rápida se propaga, se não for travada, até ao ponto de se constituir a imunidade de grupo (herd immunity). No caso deste coronavírus, os parâmetros de propagação, inseridos nos modelos matemáticos que regem a propagação, dão como resultado que o pico desta curva corresponde a 60%-70% da população. É por isso que Angela Merkel e Boris Johnson referem o número de 70% de infectados: corresponde ao pior cenário desta epidemia, o caso em que as medidas tomadas não conseguem travar o avanço do vírus.
Por isso é tão importante detectar o ponto de inflexão na curva das infecções: ele assinala a entrada na fase logística da dinâmica, em que a curva é sigmóide, e portanto que as medidas tomadas estão a ter efeito. Foi o que aconteceu na China ou na Coreia do Sul, únicos países que conseguiram controlar a epidemia em fase avançada: pode determinar-se o respectivo ponto de inflexão com uma precisão de 2 a 3 dias analisando os dados numéricos da epidemia.
O problema, como explico no artigo do Observador, é que até 16 de Março, em qualquer dos países europeus analisados, ponto de inflexão nem vê-lo. E na sua ausência temos de assumir que as medidas adoptadas não estão a ser eficazes. E portanto que a epidemia ficaria descontrolada, só parando nos 60-70%, como Merkel e Johnson afirmaram. No caso português, significaria um pico em fins de Abril-inícios de Maio, como afirmou a DGS, com 6 a 7 de milhões de infectados.
Agora os motivos de esperança.
Itália é, como tenho referido, o tubo de ensaio da Europa. Para sua desgraça, é o país europeu onde a epidemia está mais avançada; consequentemente, a sua evolução mostra aos outros países o que podem esperar. Itália está na trincheira da frente da frente da Europa nesta impiedosa guerra contra um inimigo invisível.
Os números de Itália de ontem, 16 de Março, revelam algo que pode assinalar a aproximação de um ponto de inflexão. O número de novos casos diminuiu, o que é incompatível com a evolução exponencial e pode sinalizar a inflexão tão desejada. Uma andorinha não faz a Primavera: um dia de diminuição, só por si, não tem significado. Isto já aconteceu recentemente, para nosso desespero, a 8 de Março e a 13 de Março, sendo contrariados no dia seguinte por um crescimento esmagador.
No entanto, há motivos para crer que à terceira é de vez. Os números de hoje, 17 de Março, confirmam essencialmente a estacionaridade do surgimento de novos casos. É a primeira vez desde início do surto na Europa que se registam 2 dias consecutivos (ou 3, se incluirmos o dia 15, em que o factor de crescimento foi de 1,02) de quase estacionaridade do factor de crescimento. O que pode sinalizar o fim da fase exponencial em Itália.
Mais importante do que tudo é ter em consideração que Itália impôs o lockdown total do país a 9 de Março. Esta medida foi aquela que permitiu à China, que a aplicou muito precocemente, contê-lo em Wuhan; os dados disponíveis mostram que os efeitos da medida se tornaram visíveis com um atraso de 12 dias em relação à sua implementação.
Vem a propósito referir que foi hoje publicado no Observador um artigo do Pedro Pita Barros, “Porque não acredito na “curva exponencial”” que no subtítulo “contesta as projecções de Jorge Buescu”. Na verdade, este artigo não contradiz uma palavra do que afirmo. São feitos cálculos baseados sobre os dados da China, identificando-se um ponto de inflexão por volta do dia 16 do surto mas omitindo que o lockdown tinha sido imposto no dia 6). A inflexão verificada na China e o subsequente controlo da epidemia foram consequência directa do lockdown, facto que não é referido pelo autor e pode induzir em grave erro o leitor desprevenido.
Voltando ao caso de Itália, que no dia 17 perfaz 8 dias de lockdown, é bem possível, eu diria mesmo provável, que estejamos já a ver os primeiros sinais do efeito deste na contenção da doença. É ainda um sinal precoce, que tem de ser confirmado nos próximos dias – mas é o primeiro sinal objectivo de esperança no meio do tsunami e do desespero colectivo que nas últimas semanas tem assolado a Europa.
Só com os dados dos próximos dois dias poderemos ter absoluta certeza; mas a situação actual é inédita na fase europeia do surto e, a confirmar-se, trata-se de um verdadeiro breakthrough. Será o correspondente, na I Guerra Mundial, a conseguir furar a trincheira do inimigo. Significará que a estratégia de lockdown funciona na Europa, com um atraso até mais pequeno do que Wuhan (8-10 dias para 10-12 dias). Se isto assim for, temos todos de estar muito gratos a esta Itália verdadeiramente mártir, que no mesmo dia que nos dá esta extraordinária notícia regista 345 mortes, e que com o seu holocausto permitiu identificar a arma que nos fará ganhar esta guerra.
Esperam-nos ainda semanas muito difíceis, de grandes sacrifícios, com os serviços de saúde inundados de doentes, muitos deles em estado crítico. Exigirá um esforço heróico dos médicos, enfermeiros e profissionais de saúde. Todos temos de ficar em casa e reduzir os contactos a zero. Exigirá mobilização de meios numa escala nunca vista depois do 25 de Abril. Não haja ilusões: o pior está para vir. Mas finalmente sabemos o que fazer. O lockdown funciona!
Senhor Presidente da República, senhor Primeiro-Ministro, senhores deputados da República, ouçam-nos: amanhã será o dia mais importante das vossas vidas. Não tomar a decisão que se impõe significará condenar centenas ou milhares de portugueses. Todos estamos suspensos da vossa decisão. Todos esperamos que estejam à altura das vossas responsabilidades. Façam a única coisa que os portugueses vos pedem.
Fechem o País amanhã.