Caro leitor, vamos deixar para trás a polémica em redor do leilão do 5G e, em vez disso, imagine que em 2030, tal como está previsto na RCM nº30/2020 de 21 de abril, que aprova o plano de ação para a transição digital, as redes 4G e 5G cobrem todo o país.

Imagine que, durante a década, foi possível estender a rede de serviços digitais a todas as parcelas do território nacional e que, no final, temos à nossa disposição uma gama imensa de novas funcionalidades ao alcance da mão.

Imagine que, durante a década, fomos capazes de empreender uma verdadeira disrupção socioprofissional sem graves perturbações nos mercados de trabalho e que tal esforço se deveu à colaboração estreita entre os polos de inovação digital, os centros de investigação das universidades e politécnicos, os laboratórios e centros industriais empresariais e as escolas de artes e tecnologias.

Imagine, finalmente, que a economia das plataformas digitais levou à constituição de muitos territórios-rede dotados de inteligência coletiva, distribuídos pelo país e animados por um ator-rede que cumpre uma missão e corporiza uma administração dedicada.

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Caro leitor, se não acredita nas minhas profecias, então deve ler o que se segue. Afinal, talvez eu tenha exagerado um pouco.

  1. As próximas dinâmicas e reconfigurações territoriais vão depender muito das opções tecnológicas e digitais que estruturam a matriz base de um território em termos de informação e conhecimento, cultura e criatividade; no que diz respeito à cobertura digital, a cada velocidade de rede corresponderá um determinado arranjo de espaço-distância e espaço-tempo e, nessa exata medida, a passagem da rede 4G para a rede 5G irá privilegiar as atividades e profissões da nova economia digital;
  2. No futuro próximo, as atividades e profissões da nova economia digital não significam que um território terá necessariamente mais residentes permanentes, pois o nomadismo digital prevalecerá sobre a fixação e a residência; a digitalização de um território alarga a produção de conteúdos artísticos, científicos, culturais, desportivos sobre esse território, que a realidade aumentada e virtual se encarregará de projetar no ciberespaço; se for possível materializar essa produção de conteúdos, esse território terá alargado extraordinariamente o seu campo de possibilidades;
  3. Neste contexto, é muito importante que a digitalização de um território não se reduza a um “quisto tecnológico” implantado em algum ponto do território; por isso, é fundamental que o território crie ambientes e ecossistemas inteligentes e que a digitalização seja um fator genuíno de democratização e qualidade de vida e não, mais um fator de exclusão social;
  4. No mesmo sentido, é muito importante que a digitalização do território não se reduza a uma “economia do biscate digital” (economia gig), praticada por nómadas digitais que saltitam entre espaços de coworking e plataformas de outsourcing; há, evidentemente, espaço para este segmento socioprofissional, mas a inteligência coletiva territorial é muito mais do que isto;
  5. A diferença reside, justamente, na forma como se constitui um território-rede (T-R) e no modo como a sua inteligência coletiva é capaz de exprimir os seus objetivos e bens comuns mais essenciais; esse T-R deve ser um território-desejado e a sua inteligência emocional e racional deve ser corporizada por um ator-rede, que tem a missão expressa de explicitar essa inteligência coletiva por intermédio de uma administração dedicada;
  6. A título de exemplo, a CIM do Oeste (12 municípios) e a Universidade Nova de Lisboa, através da Nova IMS e do seu Urban Analytics Lab, acabam de criar uma Smart Region do Oeste cuja ferramenta principal é uma “Plataforma Analítica Integrada de Inteligência Territorial”; trata-se de um “projeto colaborativo de cocriação”, cujos dados são obtidos a partir dos sistemas operativos públicos, das redes de sensores municipais e das várias redes de wi-fi disponíveis; este exemplo não é ainda o T-R que referimos, mas cria a base instrumental sobre a qual pode assentar o ator-rede CIM e a sua inteligência coletiva territorial;
  7. O exemplo referido mostra a importância da infraestrutura tecnológica e digital e as condições contextuais em que tudo acontece; se não produzirmos informação de qualidade não iremos produzir conhecimento de qualidade e sem conhecimento de qualidade não haverá inteligência coletiva digna desse nome; poderemos ser um território esperto, mas não seremos um território inteligente e criativo; acresce que, não raras vezes, uma estratégia de desenvolvimento territorial fica refém das tecnologias disponíveis, do capital humano existente e dos lobbies do negócio informático com mais sentido de oportunidade. Cuidado pois!
  8. Em consequência, temos de evitar a todo o custo que se forme um círculo vicioso entre as opções tecnológicas e a qualidade dos serviços oferecidos com impactos diretos sobre a coesão dos territórios; um sistema TIC mais evoluído produz mais funcionalidades e serviços, mas pode não ser rentável em determinados territórios por falta de utentes e utilizadores; se a opção recai sobre um sistema menos complexo e mais barato, essas funcionalidades e serviços não são oferecidos, o território fica privado dessas opções e vê reduzido o seu campo de oportunidades de desenvolvimento; cria-se aqui um círculo vicioso entre as opções da economia digital e as exigências da coesão territorial que só um ator-rede dedicado poderá abordar com racionalidade e sensatez;
  9. Dito isto, a razão dos instrumentos tecnológicos e digitais não deve prevalecer sobre a inteligência racional e emocional do território-rede; a produção de informação e conhecimento precisa, antes de mais, de uma definição da estratégia de desenvolvimento para o território em questão, que diga qual é a informação pertinente e crítica para ser recolhida e trabalhada com as tecnologias TIC que estão à disposição, aos preços que são praticados e com o capital humano que está disponível; como vimos antes há uma dialética própria, muito sensível, entre objetivos e instrumentos que é necessário acautelar;
  10. Acresce a tudo isto um fator crítico de inteligência coletiva territorial: a importância crucial de áreas transversais como são a transição ecológica, a transição digital e a coesão territorial, com ciclos longos de reprodução, colide com a lógica de investimentos privados que pretendem retornos rápidos do capital investido; sem um ator-rede atento, que faça uma cuidada gestão/concertação de todos os interesses em presença, corremos o risco de ver esses investimentos gerarem muitos efeitos dispersivos em vez de contribuírem para gerar benefícios de contexto e economias de aglomeração.

Nota final

Temos à nossa frente uma grande oportunidade. A transição ecológica, climática e energética, a transição digital, o impacto das redes 4G e 5G autorizam-nos a pensar que, doravante, haverá mais cidade no campo e mais campo na cidade. Com estas várias transições, sobretudo se os seus efeitos forem convergentes e bem coordenados, o espaço-distância perderá pertinência e os vários anéis urbanos, periurbanos e rurais ganharão novas funcionalidade ecológicas e digitais e maior consistência em termos de programação e planeamento territoriais. Então, se a inteligência coletiva das comunidades locais acompanhar a digitalização do território, teremos não apenas o alargamento do campo de possibilidades, mas, sobretudo, o alargamento das possibilidades do campo e da cidade.