Caracterizando a sua obra (Guerra do Peloponeso, I, 22), Tucídides diz ter composto não um discurso ornado, circunstancial, mas um monumento durável. Usa uma expressão – κτῆμα εἰς ἀεί (ktêma eis aeí) qualquer coisa como “posse definitiva”, um “bem perene” – que do para sempre faz um tesouro, precioso resgate, objecto de cuidado: o tempo não era, para o general ateniense, cenário amorfo, mas matéria cinzelada pela escolha, perenidade que se constrói no rosto de cada consentimento ou recusa.

Jasão dirigia-se para o templo de Hécate, local do encontro combinado com Medeia – magnífico, nunca ninguém como ele se vira, nem entre os mortais, nem entre os deuses, era belo “tanto na aparência como na maneira de falar”. No pensamento grego, a beleza não reside apenas no corpo, mas, sobretudo, nas palavras e no tacto para saber usá-las no momento oportuno – aquela ocasião irrepetível que exige as mais puras das palavras; verdadeiro lapso “dentro do tempo” em que nos acontece algo único, capaz de nos mudar para sempre a existência; momento que, quando chega, não admite nem passado nem futuro, apenas um perene agora. Tal como quando Medeia e Jasão estão prestes a apaixonar-se. Para sempre.

A menina esperava-o, cantando em coro com as servas, mas esquecia-se da melodia, da letra, perdia-se, parava. O seu coração parecia enlouquecer de cada vez que confundia o sussurro do vento com os passos de um homem. Subitamente chegou Jasão, ou melhor, “apareceu diante dos seus olhos ansiosos”.

As amigas afastaram-se e Medeia ficou sozinha, enquanto a sua visão turvava, as faces enrubesciam e os joelhos fraquejavam, embora os pés permanecessem cravados no chão, incapazes de um passo. Medeia e Jasão estavam agora a poucos centímetros um do outro, sozinhos. Para sempre.

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Delicada e forte – um carvalho e um abeto face a face – é a metáfora que Apolónio de Rodes encontrou para exprimir o momento irrepetível, desconcertante, sublime, em que, silenciosamente, “estamos prestes a”: prestes a falar pela primeira vez, prestes a apaixonarmo-nos para sempre.

Jasão foi quem primeiro quebrou o silêncio, pedindo-lhe que nada temesse de quanto lhe acontecia: apresentava-se diante dela como humilde viajante de terras estranhas, por ter aceitado o seu destino, decidido a superar uma terrível prova; precisava da sua ajuda, declarou sem pudor.

Medeia fixou nele os olhos, sem saber com que palavras começar; queria poder dizer-lhe tudo num único momento. Preferiu não dizer nada e agir; tirou a valiosa poção mágica da faixa que lhe cingia o peito e colocou-a nas suas mãos. Até a alma, depois de lhe ter sido arrancada do peito, lhe daria, pensou Medeia, se ele lha tivesse pedido.

Ternura é essa possibilidade de nos mostrarmos delicados, frágeis, macios como veludo, leves, ténues – como a palavra latina de que deriva, tener – diante do outro; capazes de um assombro quase infantil perante tudo quanto de inesperado a vida nos oferece; depostas todas as nossas armas e máscaras, não ter de provar nada, não fingir ser diferente daquilo que se é; preciosos na nossa desnudada fragilidade, recém-nascidos para o amor, confiando que alguém cuidará da nossa pequenez sem nos ferir e sem nos julgar.

E da mesma raiz indo-europeia *ten- deriva o brevíssimo vocabulário da ternura: do verbo latino tendeo brota a sua dimensão temporal, o saber conceder todo o tempo que o amor exige no nosso verbo “atender”; do grego τείνω (teínō), do latim teneo, provém, porém, a sua dimensão espacial, porque o amor nunca é posse, impedimento, vínculo, mas tensão, movimento em direcção a um outro que não somos nós; isto é, “estender”, “tender”, “pretender”. Os antigos sabiam que o amor exige força para o escolher, mas ternura para o viver.

Foi Medeia a primeira a recuperar o controlo de si mesma: de boa vontade lhe ofereceu toda a ajuda; explicou-lhe cuidadosa e minuciosamente tudo o que teria de fazer para ultrapassar a terrível prova que o seu pai, Eetes, lhe impusera: à hora que divide a noite em duas, o rapaz teria de se banhar na corrente do rio e, depois, oferecer um sacrifício a Hécate, bebendo puríssimo mel de abelha e acendendo uma fogueira nas suas costas. Sem por um momento se virar para trás, teria de abandonar aquele lugar sagrado, pois um único olhar seria suficiente para deitar tudo a perder. Ao amanhecer, teria de se ungir com a poção que Medeia lhe oferecera e que tornaria o seu corpo e armadura invulneráveis ​​ao fogo. Mais: quando dos dentes de dragão brotassem, como espigas, os gigantes, Jasão deveria atirar-lhes uma pesada pedra. Envolver-se-iam, como cães raivosos, numa luta mortal para se apoderarem dela e, dessa forma, a prova seria superada e o herói sairia ileso. No final, esperá-lo-ia o velo de ouro para o poder levar para a Hélade.

Uma vez pronunciadas as palavras precisas, a rapariga baixou os olhos. Chorava silenciosamente, as lágrimas escorriam-lhe pelo rosto e caíam no chão como gotas da chuva miudinha do princípio do Outono. Graças à ajuda de Medeia, Jasão partiria e vaguearia pelo mar. Agarrou-o então pela mão e implorou-lhe que nunca esquecesse, mesmo quando regressasse a casa, o nome Medeia. O seu choro comoveu o rapaz e atraiu-o ainda mais para ela: eis o “tender para o outro” que gera a ternura.

Jasão prometeu que nunca a esqueceria, nem uma única hora do dia ou da noite, nem mesmo quando regressasse a Iolco, onde jamais se ouvira o nome Cólquida. E Medeia, com uns olhos azuis que brilhavam como os de qualquer mulher que ama um homem e tem medo de o perder, respondeu com voz cortante que não se satisfaria com promessas nem com recordações – exigia fidelidade, ação.

Tal é a força que estar apaixonado pode proporcionar; uma felicidade que não admite contemplação, tranquilidade ou paz. Devemos resguardá-la, extrair-lhe a seiva, exigir, pedir, arrancar-nos coisas que dentro de nós dormitam e que tantas vezes nada têm a ver com o amor, mas que sem ele jamais poderiam surgir.

Cabia a Jasão, portanto, escolher. E foi então que propôs a Medeia que o seguisse até à Grécia, onde todos a honrariam. Propôs-lhe que procurasse o seu para sempre; que se deixasse conduzir pela incerteza – sem que disso se apercebesse, talvez aí descobrisse afinal o perfeito refúgio para a fragilidade; que reivindicasse a liberdade da sua alma – ela dar-lhe-ia as ferramentas para procurar o seu para sempre; que jamais permitisse que a abandonasse o que por direito lhe pertence; que o guardasse, cuidasse como preciosa pinha por abrir; que o acompanhasse, enfim, como sua mulher.

Jasão “assim falou” –  Ὣς φάτο (hṓs pháto) – e, a seguir a esta fórmula homérica, surge no texto da Argonáutica um ponto final; o poeta não tinha mais nada a acrescentar. Jasão e Medeia tornaram-se amantes, cúmplices, naquela alegria que se sente quando nos apaixonamos e que, sem que saiba como nem porquê, varre tudo. Para sempre.

Dois relógios de pêndulo colocados na mesma divisão acabarão por adoptar o mesmo compasso: as subtis vibrações da cadência de um tendem a cativar o movimento do outro. Até a física demonstrou que exige muito menos energia dançar com o outro do que permanecer só.