No passado dia 24 de Novembro, participámos na 2.ª edição do programa “Clássicos de Outono”, organizado pelo IEP Alumni Club e orientado pelo Professor Miguel Monjardino, no Convento da Arrábida, onde a ideia do Instituto de Estudos Políticos surgiu há vinte e sete anos. Longas conversas e um passeio pela serra (mais espinhoso do que se previa) fizeram-nos recordar o melhor que o IEP nos legou – o espírito crítico, a curiosidade intelectual e a destemidez do pensamento livre.
A sessão foi dedicada à obra História da Guerra do Peloponeso de Tucídides, a guerra que opôs atenienses e espartanos por quase três décadas. Escrita há mais de dois milénios, hoje, os dotes proféticos de Tucídides servem-nos novamente de bússola face às mudanças estruturais na ordem internacional,
Três são os episódios sobre os quais recaiu a nossa atenção, e de onde procurámos extrair significado para a atualidade: a origem da guerra, o Debate de Mitilene e a Oração Fúnebre de Péricles.
1 “O crescimento do poderio de Atenas e o medo que provocou em Esparta tornaram a guerra inevitável”, assim se lê no parágrafo 23 do Livro I. Devemos refletir vezes sem conta sobre esta afirmação, mas é insuficiente resumir a obra a esta frase tão memorável quanto profética e imprudente limitá-la a uma dimensão maquinal. Numa primeira leitura, ela parece captar a essência do conflito. Mas por detrás há uma camada mais espessa que expande o seu sentido e lhe fornece um conteúdo decisivo: a natureza humana. Tucídides identifica o “medo”, a “honra” e o “interesse” como paixões fundamentais, latentes ou declaradas, que movem todos os homens.
O muito que há a dizer sobre esta ideia é simplesmente impossível de aflorar aqui. Todavia, uma prova eloquente que dá consistência à formulação enunciada encontramo-la quando os espartanos são afrontados pela delegação ateniense no seu próprio território numa tentativa de os dissuadir de tomar parte em favor de Corinto.
Apesar de o rei espartano Arquidamo, quando desafiado pelos atenienses, ter avisado os seus conterrâneos para não caírem impulsivamente “na trivial infelicidade de desejarem a guerra devido à inexperiência ou à crença nas suas vantagens e certezas”; o éforo Estelenaídas, a despeito da moderação, responde-lhe: “Espartanos, votai a favor, como impõe a honra de Esparta”. O apelo do éforo acabou por prevalecer, conduzindo os espartanos para uma guerra inspirada pela honra e motivada pelo medo.
O que Tucídides nos deu a ver é que a natureza humana permanece a mesma, o que mudou foram os meios para a realizar e a linguagem através da qual se os empregam. Hoje, como há dois mil e quinhentos anos, o medo como a honra enevoam o sentido crítico e o valor do compromisso. E a lição dramática da história reconduz-nos à despudorada afirmação do chanceler alemão Theobald von Bethmann Hollweg, recordada recentemente por Graham Allison: “Ah, se ao menos soubéssemos”.
De facto, hoje como então, a política move-se, entre Estados ou dentro deles, por ânsias semelhantes às que movem os homens.
A reflexão sobre o dealbar da guerra do Peloponeso, que nos alerta para as paixões que impulsionam a ação dos Estados, é indispensável para que os desejos de Nie Wieder que se multiplicaram após a guerra que pôs fim ao nazismo permaneçam salvaguardados.
2 E são essas as paixões que serão depois, em Atenas, canalizadas para motivar as multidões à vingança. No quinto ano de guerra, a Liga de Delos, liderada por Atenas, vê-se diante de uma crise quando um aliado, Mitilene, transfere a lealdade para a Liga do Peloponeso, sob liderança espartana.
Atenas reage enviando a Mitilene uma frota com ordem para matar todos os homens e fazer escravas mulheres e crianças.
Contudo, cientes do grau de destruição que causariam, os atenienses reúnem-se para nova deliberação.
Cléon, num discurso tipicamente populista e fortemente emotivo, defende a chacina em curso. A necessidade de agir rapidamente sobrepõe-se ao debate; e a discussão racional é adorno.
A aliança é sustentada, não pela lealdade de Mitilene, mas pela força de Atenas. E, tendo falhado a lealdade, a força prevalecerá pelo castigo exemplar. Justiça torna-se punição e a política reduz-se a um jogo de soma zero entre fortes e fracos.
A reflexão sobre a política emotiva revela-se útil no quadro atual em que o apelo à ação imediata e correlativa rejeição dos benefícios da ponderação, o aproveitamento do medo, e o descrédito da política institucional ameaçam valores fundamentais.
Sendo este um perigo evidente, o que se retira da leitura de Tucídides que ilumine a forma de lhe fazer frente?
Diódoto, respondendo a Cléon, apela a que se cancele a ordem para matar, pois não cabe a Atenas aplicar a justiça. Tal tem o mérito de resgatar o discurso político, refém do sentimento, por meio da reabilitação da razão.
Mas o demérito de submeter a deliberação à conveniência: Atenas deve guiar-se somente pelos seus interesses.
E se é certo que a moção ganha o voto dos atenienses, permanece a questão de se o cálculo do interesse desligado da justiça é, em momentos de crise, suficiente.
Este é o desafio atual: travar a separação entre verdade e política. Só assim é possível enfrentar o domínio da política emotiva, manipuladora de paixões que se dizem suscetibilidades feridas e substituem o pensamento deliberativo por reivindicações impositivas.
3 Pelo contrário, hoje, o político vergado diante das exigências de furores exacerbados substitui o debate sobre a política por um debate de políticas. Tal é particularmente preocupante em tempos de incerteza, em que os acontecimentos se relacionam entre si e (re)produzem a um ritmo acelerado.
E se é certo que falar de políticas em vez de política poderia resultar apenas da prudência aconselhada pela complexidade dos assuntos, a recusa reiterada da discussão dos princípios em ordem aos quais as políticas se compreendem indicia o contrário.
Esta opção no debate político atual contrasta com a Oração Fúnebre de Péricles. Ressalvadas as devidas distâncias, destaca-se nesta passagem a defesa da identidade ateniense, invocando-se, inter alia, as virtudes dos homens, cidadãos comuns ou homens públicos, e a progressão na vida pública por via do mérito.
Hoje, a virtude afigura-se-nos frequentemente extravagante, por a considerarmos moralista e distante da realidade. Ora, cabe perguntar se o elogio de Péricles à democracia ateniense se compreende desligado da ideia de virtude: terá a atenção que Péricles lhe dedicou, no momento simbólico de homenagear os heróis, sido descuidada?
Só a virtude na política parece capaz de restaurar a relação essencial entre mérito e democracia, num contexto em que a estabilidade do edifício depende do estado de conservação dos alicerces.
Perante estas ameaças, tão atuais quanto atual é a natureza humana, resta à política restaurar o seu valor enquanto força construtiva e, como Péricles, afirmar sem medo as virtudes do regime que propõe ao mundo livre.