Negro – assim chamamos àquele corpo capaz de absorver toda a radiação luminosa que de tal modo o atinge que nada reflecte que fira a retina. O negro não é, portanto, escuridão nem ausência de luz, mas presença demasiado penetrante – o preto que engole em si todo o espectro cromático. Por outras palavras, é por excesso e não por defeito de cores que por vezes vemos mal ou não vemos de todo.

Negrume, negrejar, denegrir – tudo aquilo que é capaz de impregnar-se de todas as cores é quase sempre terror. Ou dor. Ou ausência. Paradoxal como a do pensamento. Deslumbrante como a do amor. Na antiguidade, o negro não era, pois, a cor da cegueira, mas a de quem via muito bem a verdade escondida na alma humana, onde tudo, mascarrado pela fuligem do medo, se torna negro – e, por palavras, sabia dizê-lo: acreditas? Confia.

Por exemplo, é um Ulisses em farrapos aquele que é reconhecido pelo seu velho cão Argos. Escreveu Homero, há 2800 anos, na Odisseia XVII, 301: ώς ένόησεν Όδυσσέα έγγυς έόντα (Ôs enoèsen Odyssea eggus eonta. Literalmente: ele pensou “Ulisses” naquele que avançava diante dele.) A cena é avassaladora porque nenhum homem ou mulher de Ítaca reconhecera ainda Ulisses disfarçado de mendigo: é o seu velho cão, Argos, que imediatamente reconhece aquele homem. O primeiro ente a ser surpreendido a pensar, na história europeia, foi um cão. É um cão que pensa um homem.

Analisemos a cena: o cão elanguesce sobre o estrume. Ao som de uma voz que lhe chega da porta, levanta a cabeça. Vê um mendigo a falar com um porqueiro. Mas o disfarce não engana por muito tempo o cão: no mendigo, ele pensa Ulisses.

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Nesse mesmo instante, subitamente, é o próprio Ulisses que se sente reconhecido em naquele ambiente; que sente que alguém, naquele espaço, está a “pensá-lo”. Ulisses olha em volta e acaba por ver, não muito longe do portão, deitado sobre um monte de lixo e palha suja, o seu velho cão, Argos, ao lado do qual, vinte anos antes, perseguira javalis, veados, lebres e cabras, quando era o rei da ilha.

Mais do que qualquer outra coisa, Ulisses não quer ser reconhecido. Limpa rapidamente uma lágrima que lhe escorre pela face e que anteriormente tinha enegrecido com um pedaço de carvão para que não o reconhecessem. Argos olha para cima, ergue o focinho, “pensa” Ulisses no mendigo, abana a cauda, ​​baixa as orelhas, morre. Ele pensa e morre.

Assim, o primeiro ser que pensa em Homero é um cão porque o verbo νοεῖν (“noein”, o verbo grego que normalmente se traduz por pensar) significava inicialmente “cheirar”. Pensar é, na verdade, farejar aquela coisa nova que surge no ar que nos circunda. Significa intuir bem para lá dos farrapos, bem para lá dos rostos manchados de negro, no seio da falsa aparência, no mais fundo do ambiente em constante mudança, a presa, um movimento furtivo, o próprio tempo, um salto, uma morte possível.

Descendemos de uma espécie para a qual a predação se sobrepunha a toda a contemplação. Contemplação, em grego, dizia-se θεωρία (teoria). A presa era engolida pelo devorador. A presa não poderia ser contemplada sem um ataque quase imediato, sem a destruição que sucede à visão, e sem a sua devoração total nos restos da carcaça desconjuntada pelo predador satisfeito.

Tudo quanto se podia ver, uma vez satisfeita a própria fome, eram os despojos do festim: madeira, ossos, dentes, presas, peles, conchas, penas, excrementos, estrume. Foi este um dia o nosso primeiro léxico. Todo este baixo-relevo no campo visual, vestígios dos vivos, despojos do movimento dos animais selvagens, mnemónicas dos seus mortos, são tantas letras (em latim litterae) que formavam a única coisa contemplável.

Parménides escreveu que os sinais (em grego, σῆματα) tinham sido inicialmente os excrementos dos animais perseguidos; depois, os vestígios que denunciavam as suas fugas, e por fim as estrelas (em latim, sidera) que marcavam os seus caminhos.

Os sinais da passagem das feras e dos nossos medos tornaram-se sinais de reconhecimento que guiam o caçador em direção à sua presa – até que subitamente se sublimaram e se tornaram os sinais que permitem regressar do local da matança para a “casa”, para junto do “fogo”, para a confecção das presas mortas e amanhadas, para junto da possibilidade de uma narração não apenas da caçada, mas também da sobrevivência dos seus, sentados em círculo em redor das chamas. O movimento de voltar para trás diz-se, em grego, μεταφορά (metáfora).

Os antigos gregos que habitavam a costa da actual Turquia pensavam o pensar como uma viagem com regresso: νοεῖν (noein) e νέομαι (neomai). Eles pensavam o pensar como um ir que não pode jamais esquecer o caminho pelo qual vai. Uma viagem de ida que, enquanto vai, regressa já – tal é o caminho, a ruela, a via que estrutura a base do pensamento. Heráclito escreveu, sabiamente, tratar-se de uma verdadeira ἐναντιοδρόμiα (enantiodromia, termo resgatado por Jung no século XX) – uma corrida que refaz, ao contrário, cada um dos seus próprios passos. É por isso que os primeiros pensadores da Grécia, muito antes de a filosofia se constituir enquanto tal, desejaram que a palavra νοῦς (nous – o pensamento) se fundasse sobre a palavra νόστος (nostos – o regresso). Pensar era então vaguear por não importa onde, recordando constantemente a possibilidade de poder regressar vivo para junto dos seus. Até na ousadia de pensar há um arrependimento (em latim, regressus). Há um caminho que não fica esquecido naquilo que se pensa. É isto que significa a palavra grega μέθοδος (método): o caminho inverso, o caminho recapitulativo, onde precisamente o transporte (a metáfora) é feito ao contrário.

Existe uma pessoa perdida que sem fim se ama no movimento nostálgico de pensar. Sempre. Seriam alguma vez os homens capazes de pensar sem um regresso? Sem aquele aroma único daquilo que é irrepetível? Acreditas? Confia: é claro que não.

Eis porque o verso 326 do canto XVII da Odisseia de Homero descreve o estranho thanatos (a voluptuosidade, a deflação, a depressão, a morte) do cão de caça no instante imediatamente a seguir à sua noesis (o seu olfacto, o seu pensar). As sombras da morte cobriram os olhos de Argos imediatamente a seguir a terem visto Ulisses – aquele que esperavam ver há vinte anos.

As palavras que dizem a verdade têm uma vibração diferente de todas as outras, amparam os nossos trôpegos passos, como anteriormente ampararam os de Édipo e de Tirésias. E qual dos dois escolherias para devolver a visão através da palavra senão aquele que é livre de dizer: acreditas? Confia.