Como tivemos oportunidade de ver anunciado, o Governo apresentou aos parceiros sociais o Livro Verde para o Futuro do Trabalho, pretendendo, assim, suscitar a reflexão, diagnosticar problemas e orientar a sua discussão pública. A ministra do Trabalho, Solidariedade e Segurança Social apresentou aos parceiros sociais, no passado dia 31 de março, a proposta de Livro Verde sobre o Futuro do Trabalho. Este documento irá ser discutido no âmbito da Comissão de Concertação Social ao longo do mês de abril, para ser colocado à discussão pública em maio.

Portanto, será no próximo mês que nós, na sociedade civil, teremos oportunidade de contribuir para propor um programa de esclarecimentos ou propostas de alterações ao dito documento.

Desde logo, e para início das hostilidades, retenho o total de páginas do documento, são 170. Mas não se preocupem, destas só as últimas 25 realmente nos interessam. As restantes limitam-se a tentar suportar as 21 linhas orientadoras para reflexão, evocando tendências e estatísticas europeias, muito bem escolhidas para os fins propostos. Portanto, não será a leitura de apenas estas 25 páginas que nos vai coibir de comentar e alertar para os temas mais fraturantes de um já débil ecossistema laboral.

Se pensam que ao ler o documento vão desfrutar de uma visão isenta para o futuro laboral em Portugal, lamento desiludir desde já. A verdade é que um dos coordenadores científicos do livro verde é Guilherme Dray, um advogado que recentemente foi contratado pelo Governo para mediar a negociação com os sindicatos da TAP.

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É verdade que é preciso refletir sobre os enormes desafios que enfrentam as relações laborais, mas também as novas realidades que as transformaram. Será este o momento para tal? Eventualmente, não. Digo isto porque, em menos de um ano, começamos a introduzir no nosso léxico quotidiano, expressões como teletrabalho, plataformas e nómadas digitais.

Melhorar uma determinada área da regulação laboral em diferentes dimensões, densificando-as até na legislação, requer tempo, análise e debate, algo que, de todo, não me parece que possa existir no atual contexto pandémico, onde todos os agentes económicos estão focados noutros assuntos, como a saúde pública.

Assim, e para não me alongar em matérias que não domino, irei apenas centrar-me no trabalho à distância e teletrabalho.

Segundo os autores, no contexto do trabalho à distância e teletrabalho, reforça-se a importância de salvaguardar o princípio basilar do acordo entre empregador e trabalhador para assegurar a voluntariedade das partes na adoção deste modelo de prestação de trabalho. Não obstante, sugere-se igualmente o alargamento do elenco de casos em que o trabalhador tem direito ao teletrabalho, por forma a passar a abranger, nomeadamente, os trabalhadores com deficiência, incapacidade ou doença crónica.

O desejo do Governo, não tenham dúvidas, não é impor às empresas acréscimos de custos do teletrabalho para os trabalhadores, não em matérias de instalação, manutenção e pagamento de despesas relativas aos instrumentos de trabalho utilizados, porque essas qualquer empregador já as suporta na empresa, apenas está a transferi-las para outro local, mas, sim, inventar outras despesas estimadas com fatores totalmente discricionários.

Alguém tem dúvidas que um colaborador em teletrabalho tem mais qualidade de vida, com mais tempo para si e para os seus? Não será este, desde logo, um trade-off aceitável? Tenho vários trabalhadores que pouparam duas horas por dia em deslocação e estão a investir na atividade física ou outros hobbies.

Agora podem existir abusos? Acredito que sim. A tentação é enorme para que as chefias exijam mais, mas também sei de vários bancos e empresas de telecomunicações que, atualmente, estão a oferecer apoio psicológico aos seus trabalhadores nestas condições. É isto que desejamos? Aumentar os níveis de isolamento e insegurança dos nossos trabalhadores?

De que servem todos os anos de criação de uma cultura da empresa, se, no futuro, para determinadas funções, poderemos ser obrigados a contratar em teletrabalho? Há dúvidas que a cultura de uma empresa é um dos eixos fundamentais entre o sucesso e o insucesso?

Acreditam, que se numa equipa de futebol, durante a semana, os jogadores treinarem sozinhos, conseguem jogar como equipa ao domingo? Não, claro que não. Mas é isso que estão a pedir às empresas.

É igualmente salientada a necessidade de definir normativos que salvaguardem a privacidade dos trabalhadores e dos seus agregados familiares, não olvidando, a propósito da proteção dos trabalhadores, a efetivação do cumprimento de regras de segurança e saúde no trabalho, bem como o direito à reparação em caso de acidentes de trabalho, realidades que, no quadro jurídico vigente, carecem de regulamentação. Neste particular, desde logo há questões de ordem prática: então vamos enviar as empresas de saúde e segurança no trabalho à casa de cada um dos colaboradores medir luminosidade e ruído? E o que fazemos se for elevado? Pagamos o isolamento térmico e acústico e reformulamos a iluminação na casa do trabalhador?

Sejamos práticos. Se quem nos governa quer tanto esta forma de organizar o trabalho, comece por si.

As restantes 21 linhas orientadoras para reflexão, trabalho em plataformas digitais, tempos de trabalho, conciliação entre a vida profissional e a vida familiar e direito à desconexão, a proteção social nas novas formas de prestar trabalho, o associativismo, representação dos trabalhadores e diálogo social, têm, de facto, alguns temas novos que, bem enquadrados, merecem ser, no mínimo, estudados.

Agora, quando o teletrabalho aparece justificado como está, num documento destes, tudo o resto são faits divers para castigar as empresas com mais impostos ocultos.

Em conclusão, não esperem que este Livro Verde aponte todas ou mesmo algumas das soluções, pois, se assim fosse, seria o Livro Branco, cor com que, como sabemos, se anuncia um novo Papa no Vaticano.