Ao longo das últimas semanas, tenho sido visualmente assediado pelo fúcsia de um outdoor tão sugestivo quanto grotesco, plantado em plena A29, junto à saída para Espinho. Pelo facto de ser este o trajeto que faço para o meu local de trabalho, todos os dias sou confrontado, nestas viagens pendulares, com os dois desmedidos e despudorados elementos anatómicos que preenchem, abundantemente, aquele cartaz publicitário. Já todos vimos, certamente, peles e poses como aquelas algures nos classificados de um jornal, ou numa cabine de um pesado de mercadorias que estacionou na berma, ou ainda na parede da oficina onde vamos substituir os calços da viatura, pelo que não será inusitada a natureza da imagem, mas sim o contexto em que a mesma se nos apresenta.
Todos seremos também capazes de compreender, sem estranheza, o olhar mais ou menos lascivo que, após a demanda, encontra estas imagens, ou o olhar mais ou menos sobressaltado que, fortuitamente, se lhes depara. Contudo, com a inclemente e rotineira imposição da volúpia e da obscenidade, os olhares tendem a tornar-se gradualmente mais complacentes, mais indiferentes e, por conseguinte, menos sagazes. Para os mais novos, que observam tudo ao seu redor com um olhar mais absorvente do que reativo, a exposição constante a imagens progressivamente mais hipersexualizadas acabará, entre outros efeitos nefastos, por condicionar a sua ideia de vergonha, a qual, o filósofo alemão Max Scheler definiu como “schützendes gefühl”, ou seja, um sentimento protetor, e o psicanalista suíço Léon Wurmser como “abwehrhaltung”, uma postura defensiva. Podemos comparar a importância que este sentimento tem no âmbito do desenvolvimento sexual saudável, com a importância que, segundo o professor Manuel Sobrinho Simões, o medo teve (e continua a ter) para a sobrevivência da nossa espécie. Mas como ensinar aos nossos pequenos que a vergonha não é uma coisa má, quando tudo à volta parece apontar no sentido inverso? Não estaremos nós a permitir que as nossas crianças aprendam por si o contrário do que lhes deveríamos querer ensinar?
Todos somos vulneráveis às imagens. As imagens são, muitas vezes, os argumentos mais fortes de que pais e professores dispõem na sua hercúlea tarefa de ensinar. Quando todas as tentativas de exposição de um determinado conteúdo parecem falhar o alvo, as imagens são, geralmente, uma arma infalível. Porque todos temos consciência de que “uma imagem vale mais do que mil palavras”, na exasperação perante a aparente escassez de estratégias verbais, alguns de nós acabamos por perguntar ao nosso interlocutor, de forma mais ou menos retórica, se “quer que lhe faça um desenho”. Os outros, os que pretendem ser mais delicados, apenas não perguntam.
Mas as imagens também podem ser bem ou mal utilizadas. A nossa intenção pode ser bem compreendida, e geralmente é, mas deve-se apenas à capacidade de interpretação do recetor a eficácia da sua utilização e, por isso, o seu bom ou mau emprego. Quando falamos com crianças, tendemos a adaptar o discurso e não só. Os elementos paratextuais, como o tom ou as expressões que empregamos, deverão contribuir para que a mensagem seja bem recebida, pois temos noção de que, geralmente, crianças e adultos não têm a mesma capacidade de abstração.
É por isso que as imagens são, normalmente, alvo de classificação etária. Habitualmente, os mais jovens são (ou deveriam ser) protegidos da exposição a conteúdos gráficos de caráter violento ou sexual. Este desígnio foi considerado tão premente na nossa sociedade, que os Estados desenvolveram mecanismos institucionais para a sua salvaguarda. Contudo, essa proteção, outrora entendida como fruto da evolução de uma sociedade esclarecida e comprometida com o seu próprio progresso, tem vindo a ser paulatina e sub-repticiamente corroída, em favor de poderes obscuros que pretendem tirar dividendos da apreensão deformada da realidade, por parte das crianças – o tecido mais frágil e mais vulnerável dessa mesma sociedade. É um investimento a longo prazo para os primeiros, e será certamente uma pena capital para o crescimento harmonioso dos segundos.
Roger Scruton, um filósofo britânico do nosso tempo, afirmou que “em todas as culturas, as pessoas olharam com cautela para imagens sexualmente explícitas, [mas que] essa cautela está a desaparecer e as primeiras vítimas são as crianças, aquelas que estão apenas a começar a tomar consciência de si mesmas como sujeitos sexuais e ainda não sabem o custo de ser um objeto sexual.” E isto não é apenas algo com que os psicólogos se devam preocupar. É algo que nós todos não deveríamos permitir, especialmente aqueles que são pais ou professores, e que lidam todos os dias com os rebentos da nossa sociedade.
Não me querendo debruçar sobre as consequências nefastas que a exposição a conteúdos hipersexualizados pode trazer às crianças (facto para o qual têm vindo, nos últimos anos, a alertar psicólogos e pedopsiquiatras), pretendo apenas embarcar numa reflexão acerca da permissividade e da conivência com que temos encarado os avanços daqueles poderes obscuros. Todos podemos fazer uma ideia do quão difícil será, nesta matéria, regular o ambiente digital. No entanto, nem por isso o Comité dos Direitos das Crianças das Nações Unidas se coíbe de sugerir, nesse contexto, que «os Estados Partes devem fazer com que o interesse superior da criança seja uma consideração primacial ao regularem a publicidade e o marketing dirigidos ou acessíveis a crianças». Numa entrevista recentemente dada à agência Lusa, Rosário Farmhouse, ex-presidente da Comissão de Proteção de Crianças e Jovens, apontou que as relações entre adolescentes estão a ser transformadas por completo «porque, quando começam a chegar à puberdade, o exemplo que têm foi baseado em conteúdos [pornográficos] que viram e que são desadequados para a idade deles». A responsável terá referido ainda que as relações de afeto se estão a dissipar e que os adolescentes estão a passar por «graves problemas de iniciação na sua vida [sexual].» Não estaremos nós, cidadãos adultos, supostamente responsáveis (mas aparentemente entorpecidos) a permitir que sejam queimadas etapas no crescimento dos nossos filhos? Não estaremos, irrefletidamente, a abrir caminhos para o entorpecimento parcial e irreversível dos mais tenros recetores da nossa sociedade, permitindo que outros decidam por nós quais as imagens que se lhes devem ser ou não apresentadas? Não serão essas imagens, por vezes, atalhos demasiado curtos para aquilo que os que encarregamos de defender os nossos filhos classificam como uma ameaça?
Numa altura em que, volta e meia, balões de tinta verde atingem as imaculadas vestes dos ministros e em que nascem, amiúde, narizes de porco nos mais dignos representantes da idoneidade política, aguentarem semelhantes natiformes tanto tempo incólumes e ao léu acaba por ser sintomático, não da primazia da ordem, mas antes da subserviência do caos.