A Ordem Mundial está a decidir-se na Ucrânia

A invasão em grande escala de um país soberano, a tentativa de anexação de parte do seu território e o ataque sistemático a civis e às suas estruturas de sobrevivência, mostram como as autocracias revisionistas são um perigo para a humanidade.

A invasão da Ucrânia é também o resultado do atual contexto geoestratégico mundial que se estriba sobretudo em dois fatores.

Por um lado, a expectativa da chamada “transferência de poder”. É o quadro que se desenha quando uma potência emergente desafia o poder estabelecido. A desconfiança mútua, receio e orgulho criam então uma dinâmica tendencialmente conflitual. É o cenário que se repete desde a guerra do Peloponeso, magistralmente explicado por Tucídides. Diz-nos Graham Alison [1] que nos últimos cinco séculos, das dezasseis circunstâncias semelhantes, doze levaram à guerra.  O desafio central deste século é, pois, assegurar que a ascensão da China seja acomodável na ordem internacional e não leve à Guerra. O respaldo da “parceria sem limites” entre a China e a Rússia, apresentado dias antes da invasão, foi visto como um preliminar necessário para a decisão da Rússia invadir a Ucrânia. Mas dá à China responsabilidades próprias para a sua resolução, que esperamos sejam apresentadas, dentro de dias, como Wang Hi afirmou na Conferência de Segurança de Munique.

Por outro lado, vivemos um quadro de “competição entre grandes potências” subscrito nos conceitos estratégicos de todas elas. Seja porque o aceitam, ou porque as outras o subscrevem. É necessário retroceder séculos, para este quadro relacional constitua o modelo que determina as ações mútuas das potências.  É que esse entendimento pressupõe que os poderosos priorizam em absoluto os seus interesses próprios em detrimento dos interesses comuns da humanidade, quando sabemos que problemas como a fome, as alterações climáticas, o crime organizado ou a guerra, não podem ser resolvidos senão em cooperação. Esta invasão mostra, de facto, o desrespeito pela lei Internacional e pela Carta das Nações Unidas, como a Assembleia-Geral repetidas vezes reconheceu em votação, e o seu SG reiterou.

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Para Putin, o ataque à ordem estabelecida começou desde que ascendeu ao poder na Rússia. No primeiro “Conceito de Segurança Nacional da Federação Russa” que assinou em 18 Jan de 2000, disse ao que vinha. Opor-se a uma estrutura das relações internacionais baseada na “dominação pelos países ocidentais desenvolvidos, liderados pelos EUA” [2]. Todos os Conceitos subsequentes perfilham esta postura.  Putin procurou afirmar a Rússia como uma potência euroasiática e como polo mundial   promovendo a sua ascendência sobre as regiões periféricas, ou, como ele designa recentemente, da “Rússia histórica”. Para isso replicou a NATO, criando a Organização do Tratado de Segurança Coletiva na qual procurou agregar todas as antigas componentes do Império Russo e criou a Organização Económica Euroasiática modelada na União Europeia. No campo internacional estabeleceu, em conjunto com a China, uma rede de ligações com países de dimensão significativa, os BRICS que alem destes envolve o Brasil, a Índia e a África do Sul.

A acomodação da Rússia nas instituições ocidentais não lhe garantiu, porém, a ascendência que pretendia. Para manter a Rússia associada à segurança coletiva, a NATO só aceitou o pedido da adesão de novos membros em 1997 (Polónia, República Checa e Hungria) perante a assinatura, no mesmo ano, do “Ato Fundador NATO–Rússia” [3] pelo qual a Aliança reformulou as suas instituições básicas dando acesso a Representantes Russos ao Conselho do Atlântico Norte e no Comité Militar para desenvolver o programa de cooperação estabelecido com a Rússia. Uma delegação russa instalou-se, tal como os estados-membros no edifício da NATO.  E esse relacionamento foi ratificado por Putin em Maio de 2002, através do acordo “Relações NATO-Rússia: Uma nova Qualidade” [4] cujo conteúdo foi redefinido.

Mas a Rússia era apenas mais uma das nações que se juntavam para acordar, por consenso, as decisões a adotar. Tinha a mesma relevância e poder das outras. O que aparentemente não chegava.

A invasão da Ucrânia é o culminar de um processo que se alimenta na crença do declínio inevitável do ocidente. Foi isso que afirmou Putin na Conferência de Segurança de Munique em 2007 e, na mesma altura, na “visão triunfalista” [5] da China.

Um Ano de Guerra

A invasão russa parece ter assentado em 3 pressupostos: que a Ucrânia seria rapidamente dominada; que o Ocidente não iria reagir significativamente; e que China, seria neutra ou estaria a seu lado.

Porém estes pressupostos estão longe de se terem concretizado. Afinal a Ucrânia que Putin entendia não existir enquanto entidade estatal e vontade própria, tem vindo a defender-se de forma corajosa.  As justificações que apresentou para justificar a invasão não convenceram, pelo que em 12 de Março o Tribunal Internacional de Justiça[6] mandou suspender imediatamente as operações militares perante a falta de evidência sobre alegações de genocídio cometidas pela Ucrânia no Dombas que a Rússia tinha apresentado como justificativa para a invasão.

Na ação russa, o planeamento e conduta da guerra tem vindo a expor erros sistemáticos que debateremos noutra oportunidade, pretendendo aqui apontar a questão central. A Rússia mantem nas forças armadas os mesmos traços autocráticos que se vislumbram na sociedade.  Uma estrutura autoritária, pejada de corrupção, com excessivos níveis de comando e em que as decisões são impostas sem que se entendam, nem o conceito, nem as razões. Os escalões subordinados, não participam nelas, são meros executantes usados com uma frieza a raiar o desprezo. A iniciativa não é suscitada, nem bem-vinda e as baixas atingem hoje cerca de 200.000 homens. Perante o falhanço da substituição do regime ucraniano em três dias, a Rússia retirou da região norte e concentrou-se no ataque a Dombas mas foi detida em Agosto de 2020. Putin foi forçado a ordenar uma mobilização de 300.000 homens. Outros tantos fugiram da Rússia. Desde Setembro a Dezembro os Ucranianos recuperam partes significativas do território que a Rússia tinha ocupado em Kharkiv e em Kherson. Estamos atualmente na tentativa russa de relançamento da ofensiva enquanto continua sistematicamente a destruir as infraestruturas críticas de Ucrânia. Com pouco sucesso operacional. De facto, é o sistema que está errado. O modelo militar autoritário russo não gera iniciativa e leva à desmotivação dos soldados – “carne para canhão”. Os ucranianos estão a deter a vaga invasora e preparam-se para lançar uma contraofensiva possivelmente no início do Verão.

A Europa reagiu. Libertou-se da dependência energética e sancionou fortemente a Rússia. Sobretudo uniu-se em torno da NATO e o laço transatlântico foi reforçado. Os aliados estão a ajudar a Ucrânia a defender-se, segundo o art.º 51 da Carta da ONU. Se antes havia dúvidas sobre a finalidade deste apoio, hoje ele é claro: derrotar a agressão russa, para que a Ucrânia possa persistir como país soberano.

Da China que nunca condenou a invasão russa, veio finalmente uma iniciativa a seguir com cuidado e esperança. Na mesma Conferência de Segurança de Munique, Wang Yi, alto responsável pela ação externa de Pequim, disse que a China fará uma proposta escrita para “conversações de paz”, com vista à “solução política da guerra”. Tenhamos esperança, mas continuemos e ajudar a Ucrânia.

Um Roteiro para a Paz

A intervenção pública de Putin de hoje, dia 21 de Fevereiro, não é de paz. Ao contrário continua a culpabilizar o ocidente pela guerra, a acusar a Ucrânia de violações no Dombas que o tribunal internacional de justiça não identificou e prepara o povo russo para uma guerra prolongada. No fundo, mantem a posição de que só dialoga depois de atingir os seus objetivos. Não vale a pena enganarmo-nos. A Rússia apenas negociará quando não poder fazer mais nada.

Um Roteiro Europeu para a Paz sustentável deverá, pois, basear-se em 2 Princípios:

  • As decisões de hoje sobre o conflito, irão influenciar os comportamentos estratégicos e a ordem mundial no resto do século;
  • A Rússia é, porém, um componente essencial do continente, pelo que as relações mútuas, a prazo, só podem ser de coexistência e, desejavelmente, de cooperação.

Para chegar uma paz sustentável, julgamos necessárias 3 Condições:

  • Manter a Guerra limitada à Ucrânia, impedindo tanto a escalada horizontal como vertical. Para evitar males maiores;
  • Apoiar a Ucrânia para que esta se defenda e reponha as suas fronteiras, nos termos do art.º 51 da Carta. Pelo que sabemos até hoje, a única forma de levar Putin à mesa de negociações é a iminência do fracasso;
  • Responder aos interesses legítimos de segurança da Rússia. A estabilidade estratégica no continente, que Putin tem pedido, é de facto essencial. As garantias de segurança mútua, negociadas na guerra fria e praticamente abandonadas por culpas mútuas, necessitam de ser atualizadas e reativadas. Há um longo caminho a percorrer por todos os interessados para lá chegar. Mas esta jornada é inevitável.

[1] Graham Allison, Destined for War, Houghtan Mifflin Harcourt, New York, 2017
[2] National Security Concept of the Russian Federation, disponível em https://nuke.fas.org/guide/russia/doctrine/gazeta012400.htm

[3] Founding Act on Mutual Relations, Cooperation and Security disponível em:  https://www.nato.int/cps/en/natohq/official_texts_25468.htm

[4] NATO-Russia Relations: A New Quality, disponível em:  https://www.nato.int/cps/en/natohq/official_texts_19572.htm

[5] Henry A. Kissinger, On China, The Penguin Press, New York, 2011

[6] “Order. Allegations of genocide under the convention on the prevention and punishment of the crime of Genocide (Ukraine v. Russian Federation)”, 16 March 2022 Disponível em https://www.icj-cij.org/public/files/case-related/182/182-20220316-ORD-01-00-EN.pdf