Talvez seja um defeito (de presunção) que só um professor universitário, português, vivendo em Inglaterra há mais de oito anos, padece, mas o patamar a que vimos assistindo – não só na era Covid – das notas de ingresso ao ensino superior público é de tal maneira (sobre)elevado, que tenho dúvidas que permita fazer uma distinção justa entre aqueles que participam no concurso. Só para dar alguns exemplos de 2020, a nota mínima para Engenharia e Gestão Industrial foi de 17,73 e de 19,13 nas Universidades de Lisboa e do Porto, respectivamente, Ciências da Comunicação foi de 17,05 e 17,85 nas Universidades de Lisboa e Nova de Lisboa, respectivamente, e Direito foi de 16,20 valores na Universidade de Lisboa. Ou seja, tudo nos píncaros.

Mas isto não deveria ser nenhuma surpresa: a SPM (Sociedade Portuguesa de Matemática) já tinha criticado a opção do IAVE (Instituto de Avaliação Educativa) sobre o exame final Nacional de Matemática (A), dizendo que “o sistema encontrado de itens facultativos vai concentrar as classificações dos alunos, tornando-se extremamente difícil, se não mesmo impossível, seriar de forma justa os futuros candidatos ao ensino superior, esperando-se, igualmente, um planalto das classificações mais altas.”

A previsão da SPM confirma-se: não pode ser normal que, no exame de Matemática, em que a média foi de 13 valores (bom, muito bem, gostaríamos que fosse sempre assim, no meu tempo era negativa!), a moda tenha sido de 19 valores (ehh?!). Isto significa que a distribuição de notas, sendo “normal” (do ponto de estatístico), é pronunciadamente assimétrica com desvio para as notas mais altas. Não seria mais razoável que o exame estivesse desenhado para que a média fosse de 13 valores, mas a moda não mais de 14 ou 15 valores, para dar espaço aos que realmente sobressaem, sobressaírem?

Entrei em Engenharia Mecânica, no Instituto Superior Técnico (IST), há precisamente 25 anos, com a média de 14 valores. Nada de brilhante, mas foi o suficiente para entrar num curso em que a nota mínima foi de cerca de 12 valores. Licenciei-me em 2001 com… 14 valores também. Mais tarde, já em Inglaterra e já depois de me ter Doutorado em 2010, concluí um MBA (Master in Business Administration) em 2016, cuja classificação final foi… 70%, ou 14 valores. Se excluirmos o Mestrado (também em Engenharia Mecânica, pelo que devo ser uma pessoa muito aborrecida) em que tive nota mais alta, o meu percurso tem sido bastante consistente: sou um 14 confirmado.

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Ter 14 em Engenharia Mecânica no IST não é mau, mas dos alunos que ingressaram em Engenharia Mecânica no IST há 25 anos, o melhor aluno era conhecido como o “Ricardo dos dezanoves”. No entanto, apesar da sua alcunha ser bastante hiperbólica, a sua média foi, se não me engano e sem garantias de ser verdade, 17 valores. Porque, apesar de se ter muitos dezanoves, às vezes lá vem um 15 que nos estraga a média toda. Tanto quanto sei, nesse mesmo ano, o melhor aluno de Engenharia Civil – que é um amigo meu – teve 17 valores de média. Ambos são hoje brilhantes profissionais, um no meio académico e o outro no mundo empresarial.

Continuando a utilizar como exemplo o curso de Engenharia Mecânica no IST, para que se perceba as diferenças com o que se passava há 25 anos, a nota do último candidato, este ano, foi de 18,10 valores. Entraram 177 alunos. Em 2019, a nota do último candidato foi de 17,33 valores num universo semelhante. Para que se tenha uma ideia, para se ter uma “média” nesta ordem de grandeza, é preciso ser-se muito bom a tudo. É como agarrar no equalizador de uma aparelhagem e puxar todas as frequências lá para cima. Portanto, e do ponto de vista de uma pessoa que ingressou no ensino superior público há 25 anos com 14 valores, esta normalização – em que as notas altas são o comum – não é exclusiva nem a 2020, nem à era Covid-19. É importante notar que, há cerca de 25 anos, a nota de entrada para um curso como o de Engenharia Aeroespacial no IST, que hoje é de 19,13 valores, rondava os 15 valores, e a nota de entrada para Engenharia Mecânica no IST rondava os 12 valores. Só cursos como Medicina e Arquitectura é que, por norma e nessa época, atraíam notas de entrada superiores a 17 ou 18 valores. Caso haja dúvidas, basta consultar o site da Direcção-Geral do Ensino Superior, que tem disponíveis todos os resultados desde 1997 aqui.

Uma outra questão, que deixo aqui como retórica, é a seguinte: tal como eu entrei com 14 valores e me formei com 14 valores, e tendo em atenção que os melhores alunos, no meu tempo, dificilmente conseguiam não mais de 17 valores como já relatei, será razoável esperarmos que todos os 177 alunos que entraram este ano com 18,10 valores (ou mais), se formem com 18 valores daqui a cinco anos? Ou aqueles que entraram com 17,33 valores no ano passado, se formem com 17 valores?

O meu objectivo com este artigo não é outro, senão sensibilizar para que se faça uma reflexão sobre a maneira com que se apuram candidatos para o ensino superior público em Portugal. Afinal, o que é que está fundamentalmente na origem desta normalização de notas, que não acontecia há 25 anos? Certamente que a Humanidade não evoluiu nestes 25 anos, de maneira a que aqueles que têm 18 anos hoje tenham capacidades cognitivas e genéticas mais sofisticadas do que os que tinham 18 anos há um quarto de século. Há, porém, quatro hipóteses que gostaria de propor como relevantes:

  1. os alunos estão mais bem preparados hoje do que há 25 anos;
  2. a qualidade do ensino é, em geral, melhor;
  3. os métodos de determinação da nota de candidatura tendem a inflacionar as notas;
  4. os métodos de avaliação são menos exigentes.

Em relação às hipóteses 1) e 2), não há dúvidas de que, como sociedade, temos evoluído nessa direcção e para isso basta ver os indicadores PISA, entre outros. Basta também ver, que há 25 anos se podia fumar numa sala de aula da universidade, para que se perceba em que patamar civilizacional nos encontrávamos (eu adorava fazê-lo, portanto não estou livre de crítica, mas esta caricatura é bem ilustrativa da diferença de mentalidade entre “o hoje” e “o antigamente” que descrevo). Por outro lado, o ensino tem evoluído muitíssimo, não só por ter profissionais mais bem preparados, mas também pelas técnicas pedagógicas mais evoluídas e pelo uso da tecnologia a favor da experiência de aprendizagem. Sobretudo, o ensino é hoje mais acessível a todos, no sentido em que é mais democrático e inclusivo. Tenho a certeza que todo este avanço contribui para que os candidatos ao ensino superior de hoje sejam melhores do que os do final do século XX. No entanto, será que isso explica que seja já normal ter-se 18 valores, e que um 16, que deveria ser um resultado excelente, é hoje apenas uma prestação relativamente mediana, senão medíocre? Na década de 90, só a nata arrancava dezoitos.

Em 2020, pelo contrário, 18 valores no secundário parece ser (quase) banal. O problema deste sistema, e o ponto onde quero chegar, é que seja o método utilizado para a determinação da nota de candidatura (que inclui exames de 11º ano, substancialmente mais fáceis do que os do 12º ano), seja os exames serem factualmente mais fáceis (que são, e os próprios candidatos o admitem nas diversas entrevistas que tive oportunidade de ver), seja a inflação de notas em alguns estabelecimentos de ensino públicos e privados (que é conhecida, mesmo que sussurrada ao ouvido), todos estes factores contribuem para a ilusão – que é uma ilusão de escala – de que as notas a roçar o 20 estão ao alcance de todos nós e não apenas dos mais iluminados. Mas esse, em si, não seria nenhum problema, não fosse alunos que não são assim tão bons terem ao seu alcance notas muito acima daquilo que lhes estaria normalmente reservado, e alunos que são francamente bons não terem margem para se distinguir, pois já bateram com a cabeça no tecto. A realidade é que a candidatura ao ensino superior público em Portugal se tornou numa autêntica corrida de Fórmula 1: por centésimas, se ganha a corrida. Mas será que estas centésimas são suficientes para determinar quais são os melhores candidatos?

Vejamos outros dados. Há 25 anos, concorreram 62307 estudantes às 35899 vagas do Superior (rácio de 1,74 candidatos por vaga), enquanto que em 2020 concorreram 62675 estudantes às 56866 vagas do Superior (rácio de 1,10 candidatos por vaga). Ora, não bate a bota com a perdigota. Se há coisa que estes indicadores nos sugerem, é que há 25 anos entrar no ensino superior público seria bastante mais competitivo, quando os rácios de candidatos por vaga na primeira fase eram bem mais elevados. Hoje, há praticamente um lugar disponível por candidato, enquanto que há 25 anos, praticamente metade ficava de fora. Então, como se explica que as notas mínimas de candidatura sejam hoje, em tantos casos, tão mais altas?

Como professor universitário, que sou em Inglaterra há já mais de oito anos, a minha percepção da escala de avaliação mudou muito. Em Portugal, a escala é, no ensino secundário e nos exames de candidatura, relativamente, linear. O que isto significa, é que se um aluno souber “o dobro” do outro, tem “o dobro” da nota. Em Inglaterra, a escala é logarítmica. O que isto significa, é que se um aluno souber o mínimo indispensável (chamado de “Intended Learning Outcome”), passa (ainda que resvés Campo de Ourique). Já para um aluno que saiba muito, mesmo muito, o 20 é, no limite e do ponto de vista filosófico, inalcançável. Nas universidades do Reino Unido as avaliações estão feitas de tal maneira, que a grande maioria dos alunos (a distribuição normal de que falei acima) tem entre 40% (8 valores) e 70% (14 valores). Isto significa que a média deveria andar ali nos 11 ou 12 valores, que deveria ser muito fácil para qualquer aluno atingir 8 valores, mas que é muitíssimo difícil ter-se mais de 14 valores. Dou um exemplo, que aprendi com a (malfadada) Álgebra Linear no IST, cuja escala é semelhante. O exame estava estruturado da seguinte forma: a primeira pergunta valia 6 valores e era fácil. A segunda pergunta também valia 6 valores e era de dificuldade média. A terceira pergunta valia 5 valores e era de dificuldade difícil. A quarta pergunta valia 3 valores e era só para os craques. Com um exame assim, era relativamente difícil ter-se mais de 12 (o que fazia de um 14 uma óptima nota) e praticamente impossível ter-se 17 ou mais valores. No entanto, para se passar com 10 bastava saber-se apenas um bocadinho mais do que o mínimo dos mínimos.

Finalmente, e muito rapidamente, é importante observar como evoluíram as notas de acesso mais baixas. Há 25 anos, eram inúmeros os cursos em que se entrava no ensino superior com nota negativa. Hoje, o mesmo não acontece (e entram mais alunos, atenção). Ora, o que isto sugere (note-se que não fiz nenhuma análise aprofundada) é que simplesmente deslocámos para a direita a distribuição de notas na escala. Isto só confirma, de certa maneira, que as escalas utilizadas em Portugal são pronunciadamente lineares e não logarítmicas como deveriam, na minha opinião e talvez por deformação profissional, ser.

Se por um lado os alunos estão mais bem preparados (hipótese 1), se a qualidade do ensino é melhor, mais democrática e mais inclusiva (hipótese 2), por outro lado, as notas têm estado de tal maneira inflacionadas (hipóteses 3 e 4), que é impossível apurar de forma transparente, justa e até rigorosa quais são os alunos que estão mais bem colocados para entrar em determinado curso. É importante também notar, que inflacionar notas se pode traduzir numa frustração para alunos e famílias, pois traduz-se numa aparente (i.e., falsa) sensação de sucesso. A verdade é que ter 18 valores se tornou, hoje em dia, num resultado que não é “por aí além”. Com 18,09 valores, só por si um brilhante resultado, não se entra em Engenharia Mecânica no IST, pois houve pelo menos 177 candidatos com pelo menos mais uma centésima. Quando o desempenho nesta corrida se define com esta granularidade tão fina, quando já não se resume a apenas três ou quatro cursos como antigamente, corremos o risco de estarmos a distinguir candidatos com base numa diferença que muito provavelmente é já inferior à ordem de grandeza do erro cometido na determinação da nota de candidatura. Note-se que quando me refiro a erro, o faço numa perspectiva meramente metrológica, e não de incompetência de quem avalia. E é precisamente porque existe este erro (o qual devemos saudar para que o possamos contrariar), que não podemos permitir que toda uma escala de notas se transforme numa ilusão e se deixe à mercê da sorte o futuro de tanta gente.

Agora que compreendemos as escalas de classificação e esta visão sobre as mesmas, está na altura de lançar o desafio, nomeadamente à Direcção-Geral do Ensino Superior: que seja revista a forma de aferição da nota de candidatura ao ensino superior público, começando por reduzir o peso das notas do ensino secundário (para evitar desequilibrios entre os diferentes estabelecimentos de ensino) e concebendo exames de acesso que utilizem uma escala de classificação tendencialmente logarítmica (i.e., que seja acessível a todos, mas que permita apenas aos melhores sobressaírem de facto).