The Queen is dead.

Mas há três reflexões que gostaria de partilhar, sirvam elas para o que for.

A primeira tem que ver com a maneira como a Rainha Isabel II se tornou numa espécie de divindade para os Britânicos. Há duas razões para que a Rainha tenha atingido esta aura. A primeira razão é que a Rainha cedo percebeu que tinha que ser vista pelo povo, de onde terá dito “eu tenho que ser vista para ser acreditada.” Isto é muito importante, porque tornou-se voluntariamente numa figura pública, com uma imagem que tem que ser cultivada (uma espécie de branding), ela veste-se de uma determinada maneira muito característica e reconhecível e com cores garridas, tudo isto é estudado e não é por acaso. Isto poderia ser um excelente caso de estudo de marketing (se calhar já foi, confesso que não confirmei) e de imagem de marca. Até de comunicação. O segundo aspecto é que embora ela apareça regularmente e esteja por isso sujeita a ser escrutinada no espaço público, ninguém sabe exactamente o que é que ela pensa sobre os assuntos. Por exemplo, o que é que a Rainha pensaria, exactamente, sobre o Brexit? Possivelmente este é um dos temas em que nós até teremos uma ideia mais concreta, já que foi avançado que ela seria Eurocéptica no passado, mas ainda assim não podemos afirmar com certeza qual seria a sua posição sobre o Brexit, já que se recusou a fazê-lo e até porque poderá ter mudado de opinião entretanto. Sobre a maioria de todos os outros temas (excepção também feita com a bem conhecida tensão com Thatcher em relação à África do Sul), ela conseguiu investir-se de uma atmosfera de neutralidade como nunca ninguém o terá conseguido fazer antes, o que é absolutamente notável considerando a longevidade do seu Reinado: 70 anos, o mais longo no Reino Unido, e o mais longo do Mundo com uma mulher no poder.

Ao manter esta cortina de mistério que sempre a cobriu, muito protegida pelo rigor protocolar, isto acaba por, paradoxalmente, aproximá-la mais das pessoas comuns. A Raina Isabel II teve a invulgar capacidade de agradar a Gregos e Troianos, a Trabalhistas e Conservadores, a gordos e magros. Assim, todos nós acabamos por nos sentir identificados com a Rainha, pois embora não saibamos se convergimos com o seu pensamento (podemos apenas especular), também ela nunca nos dá hipótese de entrarmos em dissonância. Sendo uma esfinge e impenetrável ela distancia-se das conotações que possam provir de afiliações a determinados grupos. Exemplos: se eu disser que sou do Sporting ou do Benfica, ou se eu disser que sou de esquerda ou de direita, ou se eu disser que sou Católico ou Agnóstico, eu estou em todos os casos a permitir que as pessoas transfiram para mim os valores que esses grupos carregam e que, por isso, se tornam características minhas e que me definem perante os outros mesmo que não o sejam.

A Rainha Isabel II conseguiu perceber que tinha que estar acima da política, e assim tornar-se no mais alto símbolo de unidade Britânica, e que a maneira de o fazer seria precisamente cuidando meticulosamente dessa neutralidade, até porque na verdade ela tinha, no Reino Unido, poucos ou nenhuns poderes, já que se trata de uma monarquia liberal, parlamentar e constitucional (embora se diga que não tem constituição escrita, o que não é, em bom rigor, totalmente correcto). Se formos a pensar bem, é sobretudo isto o que a separa de nós comuns mortais, que adoramos expressar as nossas opiniões e ser ouvidos (ou lidos, como eu aqui o estou a fazer), quase ressuscitando o aspecto divino dos Reis que Carlos Magno começou, pois ao expressarmos as nossas opiniões sobre os mais diversos assuntos, também estamos a revelar muito das nossas fraquezas. Ora, a Rainha conseguiu afastar-se dessas conotações, passando com esse truque a ser Universal e a pertencer a todos nós a partir desta identidade que não é mais do que aquilo que nós idealizamos e projectamos nela. Deste modo, este ‘ser’ torna-se intangível mas liga-se a nós e, por isso mesmo, passa de Regina a Divina.

Acho que trabalhar semelhante imagem, unificadora (que é no fundo o pilar fundamental que segura a união do Reino, quanto a mim), vai ser o maior desafio para o novo Rei.

A segunda reflexão, e relacionada com o aspecto anterior, tem que ver com a Rainha ter conseguido estabelecer uma ligação emocional e afectiva com os seus súbditos. Tive oportunidade de falar, nas primeiras horas que se seguiram à morte da Rainha, com três ingleses, e todos eles me revelaram que estavam profundamente tristes, dois dos quais confessaram que choraram com a notícia. Ora, os ingleses costumam controlar bem as emoções, e eu já vi casos em que familiares próximos morreram e nem uma lágrima foi vertida. Isto é absolutamente extraordinário. Como é que é possível que uma pessoa que nós não conhecemos, porque nunca privamos com ela e porque nem sabemos exactamente o que é que ela pensa sobre os assuntos, ela que não passa de uma figura estética e institucional (embora carregue com ela muitos símbolos e um ideal), tenha tanto poder ao ponto de entrar no nosso íntimo e mexer com as nossas emoções como faz, e desarrume a casa toda ao ponto de nos comovermos quando parte? Aqui, também, um desafio para o novo Rei: o de ser um grande Pai, quando ela foi uma grande Mãe.

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A terceira reflexão, e que talvez seja uma característica do povo que ajuda a sustentabilidade da monarquia, tem que ver com o pragmatismo britânico. Dou um exemplo de experiência de vida mundana. Aqui há uns anos, quando ainda vivia em St Albans (norte de Londres) comprei um tapete para a entrada de casa que era a bandeira britânica. Ninguém levou isso a mal e até ingleses amigos meus lá foram, e nele todos limparam os pés sem problemas. Imaginem o que seria se, em Portugal, eu colocasse um tapete à entrada de casa que representasse a bandeira portuguesa. Isso seria tido como um grande insulto, provavelmente nem eu mesmo me atreveria a pisar tal tapete. A propósito disto, o meu pai conta que até em Timor (onde viveu) e ‘no tempo da outra senhora’, ninguém se atrevia sequer a pisar a sombra da bandeira portuguesa no chão, quanto mais a bandeira. Onde quero chegar é que os ingleses, sendo muito mais pragmáticos que nós, olham para o tapete e vêm…. (surpresa!): um tapete. Isto mostra bem a relação que temos com os símbolos e com as instituições, que pode ser explicada pela dimensão cultural de Hofstede designada por ‘power distance’ (penso que em Português se poderá traduzir por ‘distância ao poder’), em que nós portugueses nos encontramos muito mais distânciados do poder do que os ingleses. Isto é uma questão muito relacionada com o seu pragmatismo: os ingleses vêem no tapete, um tapete, e não a identidade britânica ou qualquer ideal patriótico de Nação, pois aquele objecto cumpre apenas e só uma função – a de limpar os pés antes de entrar em casa (a bandeira é apenas decorativa), não carregando aquele simbolismo que nós portugueses mais rapidamente seriamos capazes de lhe atribuir (se calhar as coisas já não são tanto assim). Esta maneira de se relacionarem com as coisas e com os símbolos, acaba por ser libertadora. Eles conseguem ter mais liberdade e, com isso, serem livres de escolher ser simultâneamente monárquicos mas também liberais (não só na economia, mas também nos costumes, seja o governo trabalhista ou conservador), terem um enorme sentido de justiça, e garantirem que as instituições democráticas funcionem, mesmo em monarquia. Não conheço um britânico que não seja monárquico. Quantos portugueses conhecemos que o são? (por favor não tomem isto como uma crítica à república pois não é essa a intenção, trata-se de uma pergunta retórica).

Se as minhas primeiras duas reflexões são desafios para o novo Rei Carlos III, a terceira, que vem do povo, que vem da base, é toda a força de suporte que ele precisa para continuar com este modelo. Esperam-se muitas dificuldades, como sejam a vontade de cisão da Escócia e as fragilidades da Commonwealth. Mas por agora, e no dia de hoje, é apenas tempo de dizer:

Long live the King!