Sob os painéis solares, um manto de sombra. Hectares e hectares já se estendem pelos campos, pelos lagos e albufeiras. Vi-os eu, com estes olhos que hão-de chorar, em Portugal, no Reino Unido, no mundo. Sob o dogma das ‘emissões zero’, temos fé de que salgar o Planeta com um couraçado negro de brilho metálico, qual Bismark que se esmaga até ao horizonte, é uma boa ideia para o ambiente.

Essa crosta terrestre onde só o orvalho acontece, é agora ferida que cicatriza com ervas daninhas. Emerge um cemitério de memórias do que aquele pó já dera: batatas, milho, azeitona, girassol, arroz. Foi pasto de ovelhas, cabras e vacas, foi casa de coelhos, narcejas, galinholas e javalis. Agora nada. Deserto e vermes.

Hara-kiri paisagístico.

Os painéis solares, com o enorme (enormíssimo!) potencial que têm, estão a ser usados da pior forma que alguém com um mínimo de consciência ambiental poderia alguma vez imaginar. Hoje, painéis solares multiplicam-se nos campos como cogumelos e eutrofizam águas de lagoas e albufeiras. Fora da cidade, desnudam paisagens rurais e naturais de flora e fauna, aniquilam ecossistemas. Habituados a habitar entre paredes de betão e a respirar brumas de fumo, este é um ‘pequeníssimo’ preço que a nossa consciência urbana está pronta a pagar sempre que queremos carregar as baterias do nosso Tesla (aqueles que o podem comprar) e assim continuar a iludir-nos de que essa energia é, mesmo, mesmo, verde.

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Passo parte do Natal na Covilhã todos os anos. Convido todos a lá darem um salto, mas desta vez não para que se maravilhem com a beleza extraordinária do parque natural da Serra da Estrela, mas para que se horrorizem com o que estamos todos a fazer colectivamente no seu sopé (digo colectivamente, porque o legislador, no limite, somos nós). O que vão ver enquanto trilham as estradas, é digno de filme de terror, e o pior é que parece ser só o começo. Milhares de placas entornadas por colinas, montes e vales, no que pareceria só possível de ser idealizado por um Isaac Asimov. Terrenos que de outra forma teriam como destino mais provável a agricultura são agora entregues à escuridão. A agricultura, a primeira grande revolução que tornou possível o aumento da população, compete agora com as energias renováveis – água, vento e sol – de que tanto precisa para nos alimentar pela boca.

Mas não é só na Covilhã ou em Portugal que aderimos a esta moda Kafkiana. Também há já tapetes flutuantes, por exemplo no Alqueva, que são um exemplo de como a natureza sempre perde quando confrontada com a nossa voracidade. Mas se isto ainda parece ser relativamente pequeno, diria até que tolerável, insignificante até, que esperar do futuro? Em Bournemouth, no Reino Unido (onde trabalho), há já um parque solar maior que o aeroporto internacional da cidade que serve. É do tamanho de uma pequena vila. O parque solar de Bhadla, na Índia, tem 56 km2 de área, maior que a cidade do Porto que tem 42 km2, e tem uma capacidade instalada de 2.25 GW. A Índia é gigante e tem desertos. Quereremos fazer o mesmo nesta pequena pedra preciosa?

Detesto ser arauto do apocalipse ou impulsionador de teorias da conspiração, mas se não houver consciência de que há riscos ambientais na instalação relativamente aleatória (porventura ainda pouco regulada) de painéis solares, o problema é global, é sério, e poder-se-á tornar num atentado ecológico de natureza diferente da que estamos habituados e, por isso mesmo, de alto risco pelas dimensões e impacto imprevisíveis.

Não pretendo com este artigo sublinhar as limitações que todos conhecemos nas energias renováveis, sobretudo baixa densidade energética, alto custo, e flutuações no fornecimento, pois os seus méritos podem superar esses desafios com o devido planeamento. Mas como em tudo, há que administrar com ponderação, com conta peso e medida, com pés e cabeça. Painéis solares são uma ideia fantástica, uma oportunidade de negócio que espero muitos agarrem e que com isso prosperem, mas deveriam ser sobretudo vocacionados para coberturas de edifícios, estradas e infraestrutura civil, ou quando muito para instalação em terrenos áridos em que deles pouco ou nada se possa extrair ou em que a vida não consiga de facto vingar (por exemplo, em desertos). Painéis solares em terrenos rurais com potencial para o que quer que seja, desde agricultura a turismo, devia ser, simplesmente e lamento dizê-lo, proibido, pois deixa pegada ecológica com elevado prejuízo ambiental.

Na COP28, 118 países assinaram um acordo para triplicar a capacidade de energia renovável em 2030. Sendo louvável e até uma emergência, isto não significa ter carta branca para apagar com corrector preto a maior riqueza que temos neste pequeno rectângulo que é a diversidade orográfica e ecológica. Em Portugal, e no estrangeiro também (mas não tanto), venderam-nos que a energia nuclear não presta e é perigosa, e esquecemo-nos que a Comissão Europeia já a considerou como sendo ‘energia verde’. Só para aproveitar a oportunidade para repescar este tema que penso ser do interesse de todos (como já fiz noutros artigos, por exemplo aqui), no Reino Unido estão a construir em Hinkley, Sommerset, dois reactores nucleares (Hinkley Point C) para entrarem em funcionamento em 2027 e para fornecerem 3.26 GW a 6 milhões de pessoas (mais de metade da população em Portugal!). Também já estão a planear construir outra central idêntica em Sizewell, no Suffolk. Só para comparar com a geração solar, se utilizarmos Bhadla como referência, seria preciso ocupar uma área total de 81 km2 (quase o dobro do Porto e quase o tamanho de Lisboa) para a mesma capacidade. No entanto, painéis solares não produzem durante a noite e são, como todos sabemos, muito menos eficientes em dias nublados, pelo que a comparação não é ‘like-for-like’, especialmente se pensarmos em termos da quantidade de energia que pode ser gerada, medida em kWh.

Será que nós Portugueses não podemos aprender com os outros e pôr de parte preconceitos, integrando a alternativa nuclear no ‘mix’ energético, em que o custo de produção é, ainda por cima, bastante inferior (estimado por alguns em cerca de um quarto do que pagamos actualmente)? Se é por questões éticas e morais, então não deveríamos importar energia nuclear vinda de Espanha, o que fazemos. Se é por termos medo de acidentes nucleares (hoje, improváveis), então lamento lembrar, mas temos centrais nucleares já aqui na vizinha Espanha em que pouco ou nenhum controlo temos.

Portugal tem sido um exemplo de liderança no que toca à promoção de energias renováveis, mas até essas produzem pegada ecológica, inclusive na paisagem (que nela integra flora e fauna), que é em si frágil e que temos o dever de cuidar. É importante termos consciência que ‘energia verde’, ‘emissões zero’ e ‘carbon neutral’ são chavões de marketing utilizados por corporações e políticos que, sendo úteis para influenciar o pensamento colectivo de que temos que fazer algo, individualmente, para combater as alterações climáticas, são na verdade mitos (muito falaciosos), pois tudo o que a espécie Humana faz, que é transformar os recursos do planeta, tem impacto ambiental (fica a discussão para outro dia). Não é tarde para que possamos mudar a estratégia de implantação de painéis solares em Portugal, nomeadamente travando que esta seja feita em zonas rurais com potencial turístico ou para a agricultura, mas transferindo-a paras as zonas urbanas sem interesse paisagístico.

Lanço por isso este desafio. Não privemos a natureza da luz germinadora do sol cobrindo-a de escuridão. Investamos sobretudo na sua instalação em infraestruturas civis e coberturas de edifícios. Esse é o único modelo que trará benefício para todos: moradores, investidores, proprietários, vizinhos, turistas, ecossistemas, enfim, ao planeta. Porque, mal por mal…