“Os cuidados de saúde são a área onde as mais fantásticas novas tecnologias se combinam com as mais obsoletas, desorganizadas, contraproducentes e, muitas vezes fatais, instituições médicas” (Alvin e Heidi Tofler in A Revolução da Riqueza, 3ª edição, Novembro de 2007)
No século XX, os investimentos em infraestruturas públicas — nomeadamente ao nível do saneamento básico — a par com a vacinação massiva da população, erradicaram algumas das doenças que anteriormente dizimavam largas parcelas da população.
As ciências médicas evoluíram rapidamente levando a uma maior especialização e os hospitais multiplicaram-se e transformaram-se em organizações complexas e burocratizadas.
A saúde é hoje um direito fundamental, que em Portugal se encontra consagrado no artigo 64º da Constituição da República Portuguesa. Este facto, por si só, justifica que o Estado esteja obrigado a assegurar cuidados de saúde a todos os cidadãos, cuidados esses que são financiados pelos contribuintes através dos impostos.
Para assegurar a prestação de cuidados, os países adotam diferentes sistemas de saúde. Em Portugal, o Estado assumiu o papel de regulador, financiador e principal prestador de cuidados. Outros países há em que o Estado apenas assume o papel de regulador e financiador, sendo a prestação de cuidados assegurada por organizações privadas ou de cariz social.
Independentemente do sistema adotado, a realidade é que na maioria dos países, incluindo o nosso, enfrentamos hoje um aumento descontrolado dos gastos em saúde sem a correspondente melhoria na qualidade dos serviços prestados e na saúde global da população.
As listas de espera para consultas de especialidade e cirurgias aumentam e os tempos de espera atingem números escandalosos e inaceitáveis. As urgências hospitalares estão sobrecarregadas com situações que nada têm de urgente do ponto de vista clínico.
Nos últimos anos assistimos a um aumento da procura de seguros de saúde por parte da população, que desta forma pretende sobretudo garantir o acesso a cuidados de saúde em tempo útil.
O aumento do número de cidadãos com seguros de saúde e/ou beneficiários dos subsistemas públicos de saúde, como por exemplo a ADSE, é o motivo principal para o crescimento da oferta de serviços de saúde por parte do setor privado e social, o que nos leva a concluir que este crescimento está diretamente relacionado com a ineficácia do Estado enquanto prestador universal de serviços de saúde.
Do nosso ponto de vista nada temos contra o setor privado e social, antes pelo contrário, pois acreditamos que serão essenciais na reforma profunda que é necessário efetuar. Porém, já nos custa aceitar que o Estado, cujo SNS é financiado pelos contribuintes, contribua ele próprio para a desigualdade entre cidadãos, uma vez que quem não tem capacidade económica para comprar um seguro ou não beneficia de algum subsistema público de saúde, não tem alternativa que não seja recorrer ao SNS, ao invés dos beneficiários de seguros e/ou de subsistemas públicos de saúde que podem escolher os prestadores, quer no sector público, quer no setor privado e social.
O crescimento do setor privado e social é também responsável pela debandada dos profissionais de saúde do setor público, que encontram no setor privado e social melhores condições de trabalho e remunerações mais elevadas.
Perante um cenário em que os custos de saúde assumem uma espiral descontrolada e em que assistimos a um envelhecimento acelerado da população, temos de assumir que as situações clínicas de hoje são muito diferentes das situações clínicas de há 50 anos e por isso, precisamos de respostas diferentes das que temos hoje.
É verdade que o SNS tem vindo a evoluir procurando adaptar-se às novas realidades, todavia, esta adaptação tem sido feita através de medidas avulsas, cujos resultados não têm contribuído para resolver os problemas mais profundos do sistema atual.
O Governo e a maioria dos partidos políticos consideram que os problemas do SNS têm a ver com o subfinanciamento do sistema e que os problemas se resolvem com mais dinheiro, mais médicos e mais diplomas legais. Porém, mais do que novas leis e mais dinheiro, precisamos é de uma nova Agenda para a Saúde.
Precisamos de uma Nova Estratégia.
O primeiro princípio estruturante de qualquer instituição ou negócio é organizar-se em função das necessidades dos clientes. Na prestação de cuidados de saúde, significa que devemos afastar-nos dum sistema organizado em função dos cuidados médicos, e adotar um sistema de saúde organizado em função das necessidades das pessoas.
Precisamos de um sistema organizado em Unidades de Cuidados Integrados e não em função das diferentes especialidades médicas — como acontece atualmente.
Precisamos, por exemplo, de Unidades de Cuidados Integrados para diabéticos onde estes tenham acesso a consultas médicas de diabetologia, cirurgia vascular, cirurgia plástica, oftalmologia e outras que se entendam necessárias. Precisamos de enfermeiros especializados no tratamento de feridas, de nutricionistas, fisioterapeutas e meios complementares de diagnóstico adequados.
Neste novo paradigma o doente não circula de hospital em hospital, nem tampouco de serviço em serviço, são os profissionais de saúde que acompanham o doente e não o contrário.
Como é fácil de compreender, este método, além de muito mais cómodo para o doente, também promove o trabalho em equipa dos profissionais de saúde e, talvez ainda mais importante, a responsabilização coletiva pelos resultados em saúde obtidos.
A organização com base em Unidades de Cuidados Integrados é essencial para a adotarmos novas métricas de avaliação dos resultados em saúde. Atualmente, quando existem, as métricas visam fundamentalmente avaliar o grau de cumprimento (compliance) das guidelines previamente estabelecidas.
Não sendo nossa intenção desvalorizar a importância das guidelines, não podemos deixar de levantar algumas objeções à sua eficácia enquanto padrões de aferição do valor em saúde. Em primeiro lugar, as guidelines não têm em conta a opinião do doente, ou seja, podemos ter cumprido à risca as guidelines, mas o doente não está satisfeito com o resultado obtido. Uma segunda crítica relaciona-se com a volatilidade das guidelines. Como é sabido, o que hoje é certo, amanhã está errado e este processo de obsolescência da ciência é cada vez mais rápido.
Precisamos de um sistema que nos permita medir os resultados que são realmente importantes para o doente, porque são estes, que quando publicados e publicitados, constituem um fator de pressão e incentivo aos prestadores para melhorarem o seu desempenho.
Quanto aos custos é espantoso como os sistemas de contabilidade analítica continuam organizados com base em departamentos/serviços e não nos doentes. Saber quanto custa o serviço de cardiologia de determinado hospital pode ser útil em termos orçamentais, mas esta informação diz-nos pouco sobre a eficácia e eficiência do serviço.
Mais importante é conhecermos o custo de cada doente durante o seu percurso na instituição, ou, dito de outro modo, durante um ciclo de tratamento completo. Esta sim, é uma informação que permite comparações entre hospitais, departamentos e serviços e que em conjunto com os resultados em saúde obtidos funciona como um verdadeiro indicador da sua eficácia e eficiência.
Relativamente à remuneração dos prestadores — públicos ou privados — é preciso substituir o atual sistema baseado no preço dos atos praticados e nos materiais e medicamentos utilizados, por um novo método de pagamento mais alinhado com o valor em saúde obtido e abrangendo o ciclo completo de prestação de cuidados agudos e/ou crónicos para um determinado período, normalmente um ano.
Com este método associamos a remuneração à qualidade e não à quantidade, isto é, associamos a remuneração à satisfação dos doentes.
Além das Unidades de Cuidados Integrados já referidas é importante idealizarmos sistemas de prestação de cuidados que eliminem a atual fragmentação e duplicação de atos e procedimentos realizados, e que otimizem o tipo de cuidados prestados em cada instituição.
O princípio da subsidiariedade não deve sobrepor-se ao princípio da qualidade e eficiência dos cuidados prestados.
Como se tem visto nos últimos meses, a existência de serviços de obstetrícia em inúmeros hospitais públicos não é sinónimo de satisfação da população. Aliás, a fragmentação destes serviços é provavelmente a principal causa para os problemas das urgências de obstetrícia.
Por isso, precisamos de concentrar serviços em unidades estrategicamente escolhidas que respondam às necessidades e anseios da população.
Retomando o exemplo dos serviços de obstetrícia, a pergunta que devemos fazer a nós próprios é a seguinte: o que é mais importante para uma grávida? É ter um hospital na sua cidade que não consegue garantir um serviço de urgência durante 24 horas e sete dias por semana, ou saber que tem a possibilidade de chamar uma ambulância, que em menos de uma hora a transporta com segurança a um hospital público ou privado, onde tem à sua disposição uma equipa constituída por todos os profissionais de saúde necessários para resolverem qualquer tipo de problema que eventualmente possa surgir? Não nos custa acreditar que a maioria das grávidas escolheria a segunda opção.
Por último, precisamos de uma solução tecnológica que possibilite a recolha e o tratamento dos dados clínicos de cada cidadão e permita o respetivo acesso pelos profissionais de saúde credenciados para o efeito independentemente de trabalharem no setor público, privado ou social.