O arranque do ano parlamentar ficou marcado pela notícia do regresso dos debates quinzenais, com António Costa a ter de se deslocar a São Bento com maior frequência, num palco onde se sente bastante confortável e onde costuma arrecadar vitórias políticas. Seguramente, a oposição esfrega as mãos, mas veremos se não sairá pior a emenda que o soneto, visto não encontrar na bancada do PSD a capacidade para enfrentar o primeiro-ministro. Mais uma vez, vai-se sair reforçado o Chega e a IL, a nível mediático e de soundbite, o que será ouro sobre azul para a estratégia do Partido Socialista.

Assim sendo, e chegando ao que realmente importa, esta reentré da AR pareceu deixar em nota de rodapé a continuação dos trabalhos da Comissão de Revisão Constitucional, que PS e PSD já adiaram para o final deste mês. Ao dia de hoje, a putativa alteração da Lei Fundamental parece encaminhar-se para ser extremamente redutora, com o PS a querer restringir qualquer ímpeto de alterações estruturais na Constituição. O que me leva precisamente ao que me inquieta e onde creio ser fundamental (re)abrir a discussão de forma mais audível, num momento onde ainda estamos a três anos das próximas eleições legislativas (veremos se sim, o que comprova a urgência deste debate): a reforma do sistema eleitoral. Neste momento, presumo que os leitores mais experientes tenham soltado uma gargalhada, como quando os nossos avós nos contam a mesma história pela enésima vez. Contudo, nunca é demais trazer de volta algo que pode redefinir a aproximação dos eleitores aos eleitos e ao sistema, quando atravessamos um período histórico de muita dúvida e afastamento face ao mesmo. Empurrar com a barriga tem sido a estratégia do regime democrático e quando estamos a atingir os 50 anos do mesmo, pedem-se índices mais elevados de maturidade.

Neste sentido, é com enorme pena que vejo este debate limitado à questão da redução do número de deputados, como salvação para todas as arestas a limar do sistema. Note-se, desde já, que é uma demonstração clara do sinal dos tempos, de populismo e de resposta fácil à insatisfação das pessoas com o desfasamento entre a vida que levam em relação aos titulares de cargos políticos. Contudo, é preciso olhar para os factos e constatar que Portugal se encontra perfeitamente na média a nível de número de deputados face à população do país, na União Europeia. É crucial apresentar os dados, que são da Divisão de Informação Legislativa da AR de 2021, que mostram que Portugal até se encontra abaixo da média europeia (contando com o Reino Unido), efetuando a comparação com habitante e eleitores. Por isso, é necessário que se alargue a discussão e se proponham verdadeiras reformas estruturais que tenham em foco dois grandes objetivos: sejam de fácil perceção e entendimento para todos os eleitores e reduzam as desigualdades causadas pela mera distribuição proporcional feita pelo método d´Hondt.

Deste modo, proponho uma alteração clara com vista a assumir um modelo misto, no sentido do alemão, onde existem expressamente dois votos distintos, na altura de decidir quais os nossos representantes no Parlamento. A grande mudança, para além da já anunciada, prende-se com a possibilidade de ter um voto direto num candidato e outro num partido, não tendo de ser o mesmo. Passando a explicar de forma mais concreta: o eleitor chega à mesa de voto e tem à sua disposição dois boletins distintos: um onde vota num candidato a deputado concreto de um partido (ou independente) que pertence ao seu círculo eleitoral e no outro, escolhe um partido em concreto, a nível nacional. Este voto nacional funciona como círculo de compensação à potencial fragmentação causada pelo voto direto nos deputados e permite balancear a proporcionalidade e a governabilidade, introduzindo este último a melhor das novidades: a aproximação real dos eleitores face aos deputados e consequente melhor conhecimento dos mesmos e a responsabilidade dos eleitos em prestar contas a quem os elegeu, contrariamente ao controlo atual dos partidos face aos seus deputados.

As inquietações relacionadas com esta mudança prendem-se muitas vezes com a inclinação para os resultados eleitorais neste tipo de sistema ser de governos de coligação e a sua potencial fragilidade. Porém, creio que a nossa democracia iria beneficiar de uma maior transparência e cooperação entre partidos, permitindo aos de pequena e média dimensão se tornarem mais adultos, sentando-se na mesa redonda e deixando certos ímpetos de protesto. De seguida, acredito que o número de deputados possa ser volátil, tal como acontece na Alemanha, permitindo ajustar a proporcionalidade da composição da AR, não permitindo que a percentagem nacional de um partido seja afetada pelos resultados que tem no voto direto. Esta alínea pode ser importante para que PS e PSD, os grandes bloqueadores de uma reforma de fundo, possam aceitar a mudança.

Em tempos de descrédito na classe política, deve partir da mesma a vontade de recuperar a confiança. Numa relação, quem erra tem de ter a humildade de dar o primeiro passo, sendo que nesta de que estamos a falar é peremptório que assim seja, com o risco de, não o fazendo, estar a contribuir para um desalento cada vez mais profundo no sistema político e no poder de decisão dos próprios eleitores. Se conhecermos a cara daquele em quem votamos, estaremos mais vigilantes e existirá uma maior pressão de quem é eleito para apresentar resultados, estando mais dependente dos eleitores do que das direções partidárias. Seria uma pena que esta janela de revisão constitucional não aproveitasse esta oportunidade. Aos 50 anos, há que saber assumir os erros e querer fazer melhor pelo futuro da democracia portuguesa.

PUB • CONTINUE A LER A SEGUIR