Na celebração dos 500 anos da morte de Vasco da Gama, o que é desejável considerar? As oportunidades que o mar oferece a Portugal — que dispõe de uma área marítima equivalente à Europa Ocidental? Salientar a necessidade de preservar e valorizar um património histórico, cultural e edificado, que é uma vertente fundamental das sociedades desenvolvidas, que têm como tarefa primária o planeamento do seu futuro? Focar a lembrança do navegador no desenvolvimento tecnológico, que através do avanço técnico, no seu tempo, permitiu que fossem ultrapassados obstáculos e distâncias que pareciam impossíveis de vencer? Ou pretende-se cair na armadilha de avaliar o passado, submetendo-o a julgamentos com os valores do século XXI, incriminando e sentenciando comportamentos, atitudes, relações sociais, políticas e culturais do século XV, de forma anacrónica?

Na escolha, entre politizar uma memória, sujeitando-lhe a argumentos desajustados e sem qualquer propósito, e celebrar uma figura que, apesar de enaltecida hiperbolicamente pelo poeta (Luís de Camões), se encontra entre os grandes vultos da Humanidade, parece que restam poucas dúvidas na escolha do caminho a seguir. Registe-se, que não se defende, aqui, um comemorativíssimo oco, sem sentido, tendo unicamente por fito a exaltação nacionalista. Sabe-se que, por vezes, uma comemoração engendra retórica sem um sentido crítico e glorificação dos acontecimentos e factos. Porém, comemorar  de uma forma científica e séria implica investigar, problematizar, inquirir, aprender e, com seriedade, efetuar uma minuciosa reflexão sobre o(s) assunto(s).

Quem já visitou a igreja de São Francisco em Cochim testemunhou a significativa admiração que a população indiana tem por Vasco da Gama. Multidões acorrem ao templo para ver o túmulo do navegador português (na ala sul), onde inicialmente foi sepultado em 1524. Contudo, não é só na Índia que Vasco de Gama é reverenciado e venerado. O seu nome surge associado a descobertas científicas, como a de uma cratera na Lua, a um clube desportivo no Brasil, a uma Cátedra de Estudos numa Universidade italiana. Em Portugal, uma das pontes sobre o rio Tejo ostenta o seu nome, bem como outras inúmeras instituições e coletividades, públicas e privadas, com destaque para os dois “lugares da memória” com fortes ligações ao navegador: Sines, um porte de mar, de hub com enorme potencialidade, e a Vidigueira, uma rica região vinícola e de produção de azeite.

A Marinha de Guerra Portuguesa, herdeira das tradições marítimas do passado português, tem na figura de Vasco da Gama, a quem D. Manuel I concedeu o título de “Almirante do Mar da Índia” (1502), uma das suas referências mais representativas. A celebração do Dia da Marinha tem lugar no dia 20 de maio, precisamente, em homenagem ao sucesso da viagem comandada por Vasco da Gama, que nesse dia, em 1498, chegou à Índia (Calecute). O nome do navegador perpetua-se na Marinha Portuguesa, ainda, de outras formas. No caso dos navios é emblemático. Duas naus, no século XIX, um cruzador e duas fragatas no século XX foram batizadas de “Vasco da Gama”. Uma dessas fragatas, que integra atualmente os meios operacionais da esquadra portuguesa, dá o nome a uma classe de navios, que inclui duas outras fragatas.

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Importa referir que a Marinha Guerra Portuguesa promove e protege os interesses de Portugal no mar, através da defesa, segurança e autoridade, e no desenvolvimento do seu uso. Uma outra importante ação está reservada a este Ramo das Forças Armadas: a de preservar e divulgar de um significativo património histórico e cultural marítimo de origem portuguesa. O Museu de Marinha e o Aquário “Vasco da Gama” têm, de facto, um relevante papel na mediação cultural e científica de públicos, nacional e estrangeiro, que visitam as suas exposições. O Museu de Marinha, criado pelo decreto de 22 de julho de 1863, por iniciativa do rei D. Luís, tem entre as suas coleções um dos testemunhos materiais mais importantes da viagem que inaugurou a ligação por mar entre a Europa e Ásia. Trata-se da estatueta do arcanjo S. Rafael, esculpida em madeira, que viajou na nau do mesmo nome, capitaneada por Paulo da Gama, irmão de Vasco da Gama. O Arcanjo passou para a nau “S. Gabriel” quando, no regresso, a “S. Rafael” foi queimada ao largo de Mombaça. Aquela peça, um dos tesouros do Museu de Marinha – que se encontra num núcleo da exposição permanente dedicado à viagem de 1497-1499, juntamente com um modelo à escala da nau “S. Gabriel” — acompanhou Vasco da Gama à India nas suas duas outras viagens, e aí terá permanecido até 1600, altura em que regressou a Portugal, trazida por um dos seus bisnetos, D. Francisco da Gama.

O Aquário “Vasco da Gama” foi inaugurado a 20 de maio de 1898, durante as comemorações do IV Centenário do descobrimento do caminho marítimo para a Índia, com o patrocínio do rei D. Carlos, grande entusiasta da investigação do mar, que legou à instituição o espólio das suas campanhas oceanográficas. O Aquário possui igualmente 300 espécies marinhas vivas.

Cooperação, guerra, imposição, violência, disputa pelo poder, diplomacia, são dimensões que estiveram e se encontram presentes na “sociedade dos indivíduos” (conceito de Norberto Elias). Há, no entanto, outras aspetos que devem salientar-se: o diálogo e as trocas culturais e técnicas. Quando Vasco da Gama chega ao Índico em 1498, na costa suaíli as sociedades organizavam-se em função de um emaranhado de ligações e circuitos comerciais seculares, entre a África oriental e os mares, costas e portos da Ásia. Saberes circulavam de um para outro lado. Não é por isso de estranhar que Vasco da Gama embarque em Melinde um piloto árabe, que dispunha de conhecimento prático da rota, conduzindo dessa forma os navios portugueses a Calecute. Na torna-viagem, a expedição portuguesa trará um instrumento náutico de observação dos astros, desconhecido na Europa: o Kamal, fruto desse encontro inédito entre duas tradições náuticas, que será testado, ainda que com pouco sucesso. na viagem seguinte de Pedro Álvares Cabral (1500).

Lembrar Vasco da Gama, quando passam exatamente 500 anos da sua morte no presente ano, na véspera do Natal, vai, justamente, para além da sua biografia e das circunstâncias da sociedade em que viveu. As viagens que efetuou, nomeadamente a primeira, com um pesado custo humano – pereceu mais de metade da tripulação – pelo seu carácter pioneiro e impacto cultural, técnico e civilizacional, foi um acontecimento marcante na História Universal, ao ligar o Ocidente ao Oriente por mar. Culturas e povos, redes comerciais e tecnologias, que antes medravam isoladas e separadas, passaram a conviver sobre o mesmo “teto”, desencadeando a partir daí acontecimentos e dinâmicas intermináveis para as sociedades humanas. A Era Gâmica, segundo Arnold J. Toynbee (1889-1975), autor de uma obra monumental, A Study of History, tem início com a chegada de Vasco da Gama à Índia, em 1498, diferenciando-se da época anterior, ao abrir a mundialização das relações entre povos e das trocas culturais e comerciais, que certos autores defendem tratar-se da primeira globalização.

O ser humano e por natureza, desde os eus primórdios um “ser viajante”, que se encontra constantemente em viagem, na procura de respostas para a sua existência.  Em finais do século XV a sociedade portuguesa encontrara soluções e capacidade técnica para empreender viagens oceânicas, ao desenvolver a construção naval, a cartografia, os instrumentos de observação e medição da altura dos astros, utilizando como chave da exploração dos oceanos a navegação astronómica.  Viagens como a que Vasco da Gama levou a cabo em 1497-1499, levaram à consciência da existência de “uma” Humanidade, que habita um planeta, formado por mares e continentes. E num certo sentido, esse conhecimento e os saberes que foram sendo acumulados desembocaram, cerca de quinhentos anos mais tarde, no caminho para a exploração de outros locais desconhecidos e outros “mundos”, para além do planeta Terra: a conquista do espaço, as viagens à Lua, a investigação do sistema solar, das múltiplas galáxias e o do Universo sideral. Em todo esse processo de “ir mais além”, navegadores como Vasco da Gama tiveram um papel decisivo, amarrando Portugal e as suas sucessivas gerações a uma herança, que também é da Humanidade, que se justifica estudar e lembrar, com os olhos postos em novos empreendimentos.