Um livro recente do filósofo francês Bernard Stiegler, acerca da sociedade automática e das consequências da automatização sobre a organização social do emprego e do trabalho, suscitou-me algumas reflexões que passo a partilhar com o leitor.

1. A revolução digital confunde-se, cada vez mais, com o advento da sociedade automática e da automatização, se quisermos, dos procedimentos de cálculo automático ou sociedade algorítmica. De que trata a “governação algorítmica”? De plataformas tecnológicas, de redes sociais, de dados brutos extraídos dessas redes sob a forma de sinais infra-pessoais, de procedimentos de cálculo e correlações estatísticas sob a forma de padrões de comportamento.

2. No plano estrutural, a sociedade algorítmica alimenta-se de uma cibercultura, de um vasto ambiente informacional, da hiperinteligência dos dispositivos tecnológicos (a smartificação), da gestão do BigData e do Cloud Computing e, obviamente, da “adição digital” provocada junto dos utilizadores.

3. No plano do conhecimento, a sociedade algorítmica “sabe lidar melhor” com a complexidade, essa é “a sua verdade”, isto é, uma objetividade totalmente colada ao real, produzida em tempo real e sucessivamente reconfigurada por uma massa imensa de dados permanentemente actualizados.

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4. No plano operacional, o sistema Big Data faz a limpeza, triagem, categorização e cálculo algorítmico dos dados. Não interessa o contexto, a singularidade, a significação desses dados. Os indivíduos são “agregados temporários de dados brutos”, quantificáveis e sucessivamente reconfigurados a uma escala industrial, se quisermos, uma espécie de coisificação dos indivíduos; tudo fica indexado a um qualquer indicador quantitativo, para os fins da sociedade hipercompetitiva e performativa.

5. No plano da teoria crítica, estamos perante uma espécie de “modelo extrativista” em que os cidadãos internautas, utilizadores de redes e plataformas, são produtores e fornecedores de uma gigantesca massa de informação pessoal, muita dela subliminar, num ambiente informacional vertiginoso e hipnótico, que tem tanto de benignidade como de toxicidade.

6. No plano da relação de poder, a sociedade algorítmica é, aparentemente, uma nova forma de gerir a incerteza e a insegurança políticas; todavia, ela procede por inversão dos termos da equação, isto é, são os meios (o sistema técnico e tecnológico) que tomam conta dos fins; como a inovação política e social corre muito mais lentamente há o risco de ficar prisioneira da elevada toxicidade da sociedade algorítmica.

7. No plano das métricas territoriais, a sociedade algorítmica permite-nos introduzir e distinguir duas métricas importantes: a métrica dos territórios-zona (T-Z) e a métrica dos territórios-rede (T-R). A primeira reporta-se ao poder vertical dos territórios convencionais, a segunda ao poder horizontal ou lateral dos territórios inteligentes que cultivam a inteligência colectiva por intermédio das novas plataformas digitais. As plataformas colaborativas e a economia dos bens comuns são uma esperança para todos os territórios, sobretudo os mais desfavorecidos.

8. No plano cognitivo do saber-conceptual, a sociedade algorítmica, na sua exuberância calculatória, transforma os algoritmos em próteses cognitivas, que provocam não apenas a exteriorização do saber mas, também, a proletarização de algumas /muitas classes profissionais e intelectuais. A sociedade algorítmica é, portanto, uma sociedade altamente paradoxal com inúmeros conflitos políticos e societais no horizonte próximo.

9. No plano do sujeito individual, os nossos “duplos algorítmicos” podem ser muito úteis se os soubermos manipular em nosso benefício; no resto, o nosso rasto, a nossa traçabilidade, serão explorados exaustivamente em ordem a produzir padrões supra-individuais que “antecipam e orientam” o nosso comportamento, tudo garantido pela racionalidade algorítmica.

10. No plano da organização social do emprego e do trabalho, a sociedade algorítmica da automatização é uma tecnologia verdadeiramente disruptiva, isto é, cria a breve prazo um forte desemprego estrutural. Mas é também uma grande oportunidade para a inovação social e política que chegará, estou certo, à boleia da sociedade algorítmica. Vem aí a sociedade contributiva e colaborativa, o 4º sector, os bens comuns, as moedas sociais, a inteligência colectiva territorial, o rendimento básico de existência, a economia circular e uma nova organização do trabalho profundamente criativa e inovadora.

Professor da Universidade do Algarve