Comecemos por relembrar um dos mais conhecidos acontecimentos geopolíticos do século XX. Em outubro de 1962, os Estados Unidos descobrem que a União Soviética está a instalar armamento nuclear em Cuba, que alguns mísseis já estão em território cubano e outros estão a bordo de navios soviéticos. Kennedy decide-se por um bloqueio naval a Cuba que visava impedir a passagem dos navios soviéticos. A crise acaba por ser resolvida com o seguinte acordo: a União Soviética retiraria todo o armamento nuclear de Cuba, os Estados Unidos comprometiam-se a não invadir Cuba e levantariam o bloqueio. Numa cláusula secreta, os Estado Unidos comprometiam-se a retirar também os mísseis nucleares que tinham instalados na Turquia, como aconteceu no ano seguinte. Politicamente, Kennedy saiu por cima e Khrushchov, ao ter de voltar atrás nas suas intenções, saiu publicamente derrotado.

Agora o Orçamento. Não nos alonguemos com as conhecidas incongruências de Pedro Nuno Santos quando ao Orçamento do Estado. Sim, já sabemos, a viabilização que era “praticamente impossível” é agora quase certa, mas por duas razões, apenas e só por duas razões, duas novidades: as últimas eleições terem decorrido há apenas 7 meses e a grande possibilidade de novas eleições sem que delas resultasse uma maioria clara que garantisse estabilidade (leia-se “um Governo liderado pelo Partido Socialista”). Politicamente, o importante é o seguinte: a aprovação do Orçamento é, aos olhos de todos, uma derrota política para Pedro Nuno Santos e uma vitória para Luís Montenegro.

O que tem o Orçamento que ver com a crise dos mísseis em Cuba? Os ganhos políticos materiais e enumeráveis de nada serviram aos derrotados. Antes da Crise dos Mísseis de Cuba, a União Soviética não tinha (ainda) instalações nucleares instaladas em Cuba e continuou sem as ter, já os Estados Unidos tinham mísseis instalados na Turquia e retiraram-nos. Khrushchov tinha trunfos para apresentar, mas estes só apareceram um ano depois com a retirada dos mísseis americanos da Turquia (e quem se preocuparia em reescrever a história da Crise dos Mísseis de Cuba um ano depois?). O bloqueio deu a Kennedy uma imagem de firmeza que lhe faltara junto da opinião pública americana devido à fracassada Invasão da Baía dos Porcos em 1961. Algo semelhante aconteceu com Orçamento. O Orçamento apresentado pelo Governo é marcadamente de centro com a execução do PRR, com aumentos salariais na função pública e no valor de referência do complemento solidário para idosos, com um IRC pouco alterado (desce apenas 1 ponto percentual) e um IRS Jovem bastante próximo do modelo apresentado pelo PS no seu programa eleitoral. Provavelmente, o Orçamento seria mais à direita tivesse o PS dado o seu aval sem qualquer negociação. Repete-se então uma lição da História: por vezes, em política, importa menos o ser, do que o parecer. Como bem notou Helena Matos no seu mais recente artigo, é bem possível perder ganhando. Pedro Nuno, como Khrushchov, venceu nas políticas, Montenegro como Kennedy ganhou na política.

Como foi isto possível? Em primeiro lugar, as hesitações de Pedro Nuno e as suas mensagens erráticas quanto à aprovação do dito Orçamento desgastaram tanto o Partido Socialista como a sua liderança. Em segundo lugar, a postura de intransigência e parece-me um erro político. Bastava ao Governo uma aproximação das linhas vermelhas definidas pelo PS que este ficaria numa posição complicada: aceitar a proposta do Governo e mostrar fraqueza ao recuar das suas linhas vermelhas; ou recusar a proposta e arriscar fazer cair o Governo. Perante esta situação, Pedro Nuno comete, a meu ver, um terceiro erro: recusa a proposta, mas promete viabilizar o Orçamento. Diz que não e faz que sim. Uma solução criativa que mostra mais fraqueza do que qualquer alternativa. Pedro Nuno afirma que é apenas e só pelas referidas duas razões que viabiliza o Orçamento. Será verdade? Fica a pergunta: caso o Governo não tivesse ajustado a sua proposta, teria o PS viabilizado o Orçamento?

Pedro Nuno tinha uma alternativa neste processo: podia ter aceitado a proposta final do Governo, chegar a um acordo oficial e obter ganhos políticos, ou, pelo menos, não sair tão derrotado. Podia reclamar ganhos negociais, que são óbvios, e, sem deixar de invocar também um espírito de responsabilidade política e as ditas “duas razões”, podia ainda invocar o PRR para deixar o Orçamento. Podia partilhar uma vitória com o Governo, preferiu que o Governo tivesse a vitória completa. Haveria um custo? Claro. O líder socialista teria de reconhecer que o Governo queria o acordo, que não “esticou a corda”, que estava genuinamente atento às preocupações apresentadas pelo PS. No entanto, seria apenas o custo de admitir o óbvio, pois está aos olhos de todos que o Governo trabalhou para o acordo. Vitória política para Montenegro: fica a imagem de que, independentemente das suas políticas, mais ao centro ou mais à direita, o PS procura uma oportunidade para derrubar o Governo assim que conveniente.

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