Foi há 84 anos: a 23 de agosto de 1939, Joachim von Ribbentrop e Viatcheslav Molotov assinaram um pacto de não agressão entre a Alemanha Nacional Socialista e a União Soviética. Desengane-se quem acha que os extremos se tocaram: abraçaram-se e apoiaram-se mutuamente, pois ao Pacto Germano-Soviético acrescentava-se um protocolo secreto de divisão da Polónia e, dias depois, um acordo comercial extensivo.1 A 1 de setembro de 1939, a Alemanha invadiu a Polónia pelo lado Ocidental, iniciando a 2ª Guerra Mundial. A 17 de Setembro, a União Soviética avançou pela fronteira Oriental da Polónia, continuando posteriormente a anexar mais territórios na Europa de Leste.

Nos finais da década de 1930, e enquanto tinha esperança nas conversações Anglo-Soviéticas, o PCP era crítico da política externa de Salazar que se preparava para “entregar Portugal, sem resistência, nas mãos do fascismo internacional”, segundo escrevia O Avante! em maio de 1939 (série II, nº 84). Na sua “Crónica da Semana” no jornal O Diabo, o dirigente comunista Cansado Gonçalves, sob o pseudónimo de António Fazenda, criticava regularmente a política de apaziguamento e argumentava que a anexação da Checoslováquia tornaria Hitler mais forte e facilitava futuras agressões.2 No Tarrafal, Bento Gonçalves e outros comunistas defendiam a “Política Nova”, que apoiaria uma eventual política portuguesa que apoiasse um “bloco de paz” entre a URSS, Inglaterra e França, contra a Alemanha Nacional Socialista.3

Seria de esperar que o Pacto Germano-Soviético fosse, pela mesma linha argumentativa e pela luta antifascista, também ele repudiado pelo PCP. Não foi. Para o PCP a 2ª Guerra Mundial é, como a 1ª Guerra, uma guerra entre dois imperialismos. A ocupação de territórios no Leste Europeu por parte da URSS acontece para o bem do proletariado e protege-o do Fascismo. Se Cansado Gonçalves, nas suas crónicas, não esconde um tom pró-Britânico na sua defesa pela neutralidade4 e lembra que é a Alemanha a agressora, já Cunhal interroga-se publicamente se há diferenças entre os regimes de Chamberlain, Hitler ou Daladier.5

O PCP apoiava o Pacto. Porquê? Qual o fundamento politico-ideológico para este apoio? Sendo a URSS a grande potência Socialista, tudo o que a protegesse e fortalecesse, fortalecia também o Socialismo. Daqui nasce um “nacionalismo russo-soviético” do PCP que era, efetivamente, como outros partidos comunistas europeus, um satélite da política externa da URSS. De facto, como constava no Informe do partido sobre a situação internacional, “a União Soviética, à margem da guerra, fortalecerá enormemente o seu poder, ao passo que os países capitalistas se dilaceram entre si”.6 A neutralidade era, então, a verdadeira opção antifascista que fortaleceria o Socialismo.

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Sabemos que, entretanto, o PCP evoluiu. João Ferreira, não sem as suas ambiguidades, admitiu no seu debate com André Ventura que a Coreia do Norte não é o modelo e a experiência de democracia que vê para Portugal, e os próprios documentos estratégicos deixaram cair referências à Coreia do Norte, Cuba, Laos e Vietnam. No entanto, tudo isto é recente e o PCP continua a celebrar a Revolução de Outubro. Talvez não tenha mudado assim tanto e o episódio do Pacto Germano-Soviético ainda hoje nos possa ajudar a compreender melhor o partido.

A reação ao Pacto revela o “centralismo democrático” a vários níveis. A nível internacional o PCP seguiu disciplinadamente a posição da Internacional Comunista, ditada pela própria política da União Soviética. A nível interno, também os dirigentes do partido ganharam a medalha de ouro da ginástica acrobática das ideias e mudaram opiniões para concordarem com o partido. Membros como José de Sousa, que discordaram do Pacto, foram expulsos. Ainda hoje se nota no PCP esta disciplina interna, reflexo do princípio leninista do “centralismo democrático”.

Também em política externa o Pacto nos pode ajudar. A ambiguidade inicial do PCP em relação à guerra na Ucrânia revela que o PCP guarda em si vestígios do nacionalismo russo, embora desta vez já sem o mesmo raciocínio coerente por trás. Como se de uma pessoa se tratasse, o partido guarda as suas emoções, e é difícil ao PCP desapegar-se daquele país que em tudo apoiou durante décadas. A invasão russa é, também, contra o Ocidente capitalista, pelo que é difícil ao PCP opor-se aos seus fundamentos. Em todo o caso, sejamos justos, João Ferreira condenou o comportamento do Kremlin e o PCP tem agora uma doutrina sobre a guerra que é mais clara e definida que muitos. Inclusivamente, um olhar crítico aos comportamentos do Ocidente e à expansão da NATO é muito importante para a diversidade e profundidade da discussão pública.

À semelhança da reação ao Pacto, talvez por ser também uma guerra entre capitalismos, o PCP tem sobre esta guerra uma posição quase neutral e, neste caso, pacifista e apaziguadora. Esta posição apaziguadora, concorde-se ou não com ela, é compreensível ao olharmos para os horrores da guerra, embora também implique que a Rússia alcance alguns dos seus objetivos no decorrer das negociações. A hesitação inicial a condenar a ação russa não é aceitável. Na página do PCP sobre a guerra é clara a condenação do regime “capitalista” de Putin, continua a não ser clara a condenação da “operação militar da Rússia na Ucrânia”.

1 Pacheco Pereira, José. (2015). Álvaro Cunhal – Uma Biografia Política (Vol. 1: «Daniel», o Jovem Revolucionário). Temas e Debates, pág. 403
2 Fazenda, António. (29 de julho de 1939). “Crónica da semana”. O Diabo
3 Pacheco Pereira, José. (2015). Álvaro Cunhal – Uma Biografia Política (Vol. 1: «Daniel», o Jovem Revolucionário). Temas e Debates, pág. 398
4 Fazenda, António. (3 de fevereiro de 1940). “Crónica da semana”. O Diabo
5 Cunhal, Álvaro. (9 de março de 1940). “Nem Maginot Nem Siegfried”. O Diabo
6 Pacheco Pereira, José. (2015). Álvaro Cunhal – Uma Biografia Política (Vol. 1: «Daniel», o Jovem Revolucionário). Temas e Debates, pág. 408